
Fragmentos que corriam como pequenos focos de luzes intermitentes, vozes
de fundo distorcidas em eco e por fim um fundo negro e silencioso que acalmava
e adormecia, todos os outros sons foram as últimas lembranças que procederam à
tempestade. Despertou com um balde de água cristalina no rosto. Por mais
agressivo que fosse o gesto parecia-lhe o conforto divino de uma morte indolor
recompensada no paraíso. Apesar de na mente de um miserável se alcançar o
paraíso com muito pouco. Estava acorrentado a um tronco por ambos os braços, as
pernas pendiam suspensas tocando sem impor o seu peso sobre a areia. Antes que
se questionasse sobre as pessoas que ali estavam, rostos desfigurados, olhares medonhos,
os seus olhos contornaram a área procurando o lobo.
- O que fizeram
com ele?
- Ele quem? A
fera que estava contigo? Ele arrancou a mão do meu primo! – Comenta uma
daquelas personagens sobre um certo alvoroço.
- Tens de
entender, a natureza é comos nós homens, defende-se quando se sente ameaçada.
Lamento muito, no entanto o animal não apresenta qualquer perigo, se ainda
estiver vivo. Podem soltá-lo.
- Soltá-lo? Nós
não conseguimos capturá-lo. Hum… Tu nem tens noção de onde estás pois não? Nem
do tempo que estiveste inconsciente. Estás neste momento a quase três mil
quilómetros do sítio onde te encontramos, há seis dias atrás.
- Isso é
impossível! – Jason tinha a vista turva, no entanto lentamente por detrás
daqueles homens os olhos começavam a focar pouco a pouco um imenso céu azul.
Tentou levantar os seus olhos mas foi ofuscado por um enorme sol brilhante.
Subitamente, ele começou a chorar num turbilhão de emoções. Os seus anfitriões
por outro lado ficaram confusos. Recompondo-se, pronunciou-se novamente…
- Aonde estamos?
- Noutros tempos,
a grande Amazónia, foi a riqueza que nos legou a natureza que salvou o mundo e
provavelmente o resto da humanidade. Os rios dentro das florestas mais densas
não foram afetados pelas mãos dos homens. Por esse respeito pela natureza é que
não caçamos o lobo. Talvez por não gostar muito do meu primo também. – Despeja ele
entre gargalhadas, exibindo uma dentadura com muitas janelas pelo caminho.
- Sou um
prisioneiro aqui?
- Estavas perto
do Panamá quando te encontramos, estávamos numa expedição subterrânea em busca
de armas para usarmos na nossa guerra. Muitas cidades intactas ficaram
subterradas durante a guerra.
- Desculpa!
Disseste: Vossa guerra?
- Sim, depois da
grande guerra formaram-se duas grandes frações conhecidas pelas grandes Tribos.
No início era apenas uma disputa pelos recursos naturais, essenciais para a
sobrevivência da raça humana. Depois de crescerem e ganharem força, começou a
ser mais uma questão de poder.
- Bando de
ignorantes, depois do que a guerra fez ao planeta a primeira coisa que fazem
assim que assentam as cinzas é arranjar meios para fomentar outra guerra.
O homem com quem
falava encosta uma catana enferrujada ao seu pescoço…
- Cuidado
viajante, aqui perde-se a língua por muito pouco, vou dar-te o benefício de
teres andado a dormir debaixo de uma rocha, no entanto mede as palavras a
partir de agora.
- O que querem de
mim? Como é que percorreram três mil quilómetros em seis dias?
- Três dias! O
nosso mecânico Juarez conseguiu por alguns jipes de guerra a circular. O
petróleo não é um recurso natural indispensável à nossa sobrevivência mas de
momento é o mais caro do mundo. Ouro, diamantes, dinheiro, não tem qualquer
valor. No entanto o combustível, ainda pode governar a Terra.
- Não sou teu
inimigo, nem tenho interesse em escolher qualquer lado dessa guerra. Todas
frações independentemente do seu fundamento e da sua causa se guiam por um
código de honra, existem princípios básicos que nos diferenciam dos animais.
- Falas bem para
um mendigo viajante que cheira a esterco! Se tentares alguma coisa és um homem
morto!
- Tipo quê? Fugir
com uma garrafa de água para América do Norte?
- Seja o que for!
Estou de olho em ti! – Voltando-se para os demais… - Soltem-no e deem-lhe umas
roupas limpas, não se pode com o cheiro...
Algumas horas
mais tarde Jason alimentava-se com a primeira refeição decente de alguns anos. Lembrou-se
subitamente do seu amigo de quatro patas, se estivesse por perto poderia
guardar-lhe um pedaço do guisado. Depois pensou na esposa e na filha, estariam
elas em melhores condições que ele? Teriam presenciado essa nova guerra? Teriam
um prato de comida no final daquele dia tal como ele? A angústia sufocava-o e
por mais que a sua situação tivesse melhorado um pouco, não conseguia deixar de
se sentir vazio. O seu anfitrião aproximou-se lentamente e sentou-se perto de
si.
- Qual é a tua
história gringo?
- É uma longa
história!
- Uma boa
história esperemos! Porque o pessoal está indeciso ao que fazer contigo.
Estrangeiros não são de confiança aqui. Eu cresci no mato, vivi no mato toda a
minha vida. Sou um homem humilde, ignorante como me chamaste há pouco! Tenho um
pequeno exército, algumas armas, três jipes e uma aldeia! Sim tenho mas isso
não faz de mim um amperador!
- Amperador? Acho
que queres dizer imperador! Não?
- Sim isso! Um amperador!
Seja como for apesar de ter alguns ingredientes de peso. Não tenho o essencial,
a arma letal que resta do passado e está em vias de extinção no presente!
- Que é...?
- Conhecimento! E
isso… tu tens! Isso é o que devemos temer!
- O que te leva a
pensar que o sei ou não faz de mim um homem perigoso? A única coisa que aprendi
foi a manter-me vivo, isso não constituí uma ameaça para ninguém!
- Sempre resposta
para tudo! Mas diz-me seguias viagem? Para onde exatamente!
- Esperava chegar
ao Rio de Janeiro onde estão a minha esposa e filha.
O homem fixou-o
durante alguns segundos depois respondeu-lhe com uma certa frieza…
- Se elas estavam
no Rio de Janeiro podes esquecê-las porque já estão mortas. Foi lá que
despontou a guerra entre as frações, mas antes disso a ausência de uma força
que impusesse a lei transformou o estado num caos, milhares morrerem perante a
loucura dos demais até que as frações tomaram o controlo do estado e mataram
toda a gente. Culpados ou não, morreram quase todos!
Jason escutava-o
em estado de choque…
- Quase todos?
- Sim quem tinha
condições conseguiu apanhar os últimos voos para a Austrália. Se queres
acreditar que elas estão vivas? Acredita que elas conseguiram pegar esse voo e
agora vivem em paz nas últimas colónias. Se queres enfrentar a realidade que te
espera, tens bom remédio, junta-te a nós e tens uma viagem garantida para o Rio,
porque é lá que decorre a ação. Eu sei que vocês americanos gostam de armas,
não será nenhuma novidade com certeza.
- Ela nunca
apanharia esse voo para a Austrália!
- O que te faz
ter tanta certeza?
- Porque se há
algo que ela tem muito mais do que eu, esse algo é fé! Ela nunca partiria para
um território inalcançável sabendo que eu iria atravessar o inferno para chegar
até ela. Ela está viva, eu tenho a certeza que está!
- Olha à tua
volta Jason, fé em quê? A mulher que conheceste antes do fim de todos os tempos,
como o que resta da humanidade mudou. Não existe mais fé!
- Estamos a pouco
mais de 3000 quilómetros do Rio, não estamos?
- Sim, mas…
- Então não
venhas falar de fé a um homem que a duas semanas atrás estava do outro lado do
mundo. A minha fé me trouxe até aqui! Sim eu percebo de armas, tive no
exército, na guerra, e no inferno e se o único caminho que me ofereces para
alcançar a minha família é mais uma guerra então vamos embora porque para
chegar até ela eu estou disposto a destruir o que resta desta miserável raça
humana, que garanto que o mundo não sentirá a sua falta.
- Acho curiosa
essa devoção, nunca conheci a minha família, esta é a minha família e não estou
assim tão disposto a morrer por eles. Não és mais prisioneiro aqui se quiseres
partir por tua conta és livre para o fazer. Se quiseres lutar do nosso lado,
quando terminar és livre para procurar quem ou o que quiseres.
Jason assentiu em
concordância, não estava certo da sua decisão, mas era o meio mais rápido para
chegar ao seu destino. O céu cinzento tinha ficado para trás, o sol trazia um
novo ânimo uma nova força, ou talvez fosse apenas o prato de comida a surtir o
seu efeito. Certo é que três dias depois a sua pele começava a ganhar cor e
vida, um camião carregado de gente medonha chegou também, vindo de outra
localidade. Ernesto como era conhecido reunia um grupo de recrutas para a “Tribo
dos defensores da Paz”, idiotas sempre escolhiam nomes de caracter nobre para
as suas causas ridículas, o triste desta geração era que o mundo era atualmente
governado por idiotas que sobreviveram. Mas quando analisava o passado e toda a
história da humanidade ele compreendia que as coisas não tinham mudado assim
tanto. Fossem quais fossem as suas ideologias, ele fazia parte daquele mundo e
teria de percorrer a sua estrada para um dia seguir o seu caminho.
Foi no meio do alvoroço de homens sedentos de
guerra, ansiosos por dar um motivo às suas tristes existências que por cima da
montanha que se levantava por entre os enormes rios carregados de água doce
movendo-se por entre uma vegetação densa, que o som de um uivado preencheu o
horizonte silenciando os homens.
- Parece que os
teus amigos não desistem de ti facilmente! – Comenta Ernesto…
- Ainda bem!
Porque eu não desisto deles também!
- O Gringo e o
grande lobo cinzento! Se sobreviver à guerra um dia ei de escrever um livro
sobre vocês. Aposto que seria um grande sucesso.
- Terias de
aprender a escrever primeiro, seu ignorante!
Ernesto ria-se
compulsivamente expondo o seu sorriso assustador, Jason por outro lado recebe o
seu velho amigo que se aproximava lentamente. Um tanto renitente recebe o
animal nos seus braços que por si aceita o abraço humano repousando entre eles.
Os homens da tribo reuniam-se ao seu redor contemplando algo que não tornariam
a ver em vida, num mundo caótico que renascia das cinzas novamente ao encontro
do caos eles contemplavam o verdadeiro sentido pelo qual valia a pena lutar…
(Joel Flor)
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