sábado, 23 de junho de 2012

A chuva das Memórias

                O silêncio é rompido pelo ressonar do trovão, antecipando-se ligeiramente ao leve tilintar das gotas de água que levantavam os primeiros grãos de poeira da terra. Aconchegava-se na sua caixa de papelão tentando combater o frio húmido que o vento carregava, mas de certa forma enfeitiçava-se lentamente sobre o poder do som da natureza, por aquela melodia melancólica. Os sons era tudo o que possuía, os infortúnios da vida teriam num passado distante lhe levado a visão deixando-o para sempre na escuridão. A lembrança das cores das formas era nada mais que um retrato desfigurado de uma outra vida.
                Por aquela altura a densidade do som da chuva teria absorvido todos os outros sons, a cidade permanecia no silêncio, assombrado pela força da natureza que chorava sobre o mundo dos homens.
                - Vivaldi desceu das nuvens para tocar só para mim, que honra! – Comenta ele sobre uma gargalhada para o seu cachorro sarnento e moribundo.
                O sorriso desvaneceu-lhe lentamente, e a tristeza o atingiu profundamente como os relâmpagos que desciam das nuvens. Chorou incansavelmente como a muito não chorava. Desejou por momentos que a loucura o tomasse, que perdesse noção de quem era, do que havia sido e do que o tempo lhe teria roubado.
                O som de passos chapinhando sobre a água despertou subitamente a sua atenção. Pelos passos das pessoas ele avaliava o seu carácter, a sua constituição física e até o peso da sua carteira.
                Era um homem, tinha passos firmes e despreocupados, não lentos mas tão pouco apressados, os sapatos cheiravam a novos e de boa qualidade, no entanto o que não esperava era a supressão daquele som quando o homem se susteve diante de si em silêncio.
                Assustado e incrédulo temeu por momentos pela sua vida, mas rapidamente recordou-se que a sua vida nada valia, e desejou logo de seguida que a mesma tivesse em risco a fim de pôr um termo ao seu sofrimento.
                - Porque choras? – Questionou aquele homem de presença firme. A sua voz transmitia segurança, compaixão e uma certeza de que não estaria ali por acaso.
                - Choro porque não tenho motivos para rir, como deves certamente observar.
                - Entendo! A vida consegue ser cruel por vezes, nas escolhas que nunca tivemos, nos sonhos que nunca vivemos e nas cicatrizes que nunca irão sarar.
                Seguiram-se alguns segundos de silêncio. O cego tentava perceber por qual motivo estaria ali aquele homem, com certeza não era apenas para conversar. No entanto sentia vergonha de questioná-lo e assim aguardou que o seu propósito se revelasse.
                - A chuva também me desperta várias memórias, apenas as tristes.
                - Parece que temos algo em comum então.
                O cego calculou que por aquele momento o estranho homem estivesse-lhe sorrindo e retribuiu-lhe da mesma forma. Teriam passado muitos anos desde a última vez que lhe tinham dado um pouco de atenção, sentir uma presença por perto era mais agradável do que recordava.
                - Gostava de te contar uma história, se tiveres interessado em ouvir. – Comentou o estranho.
                - Tenho todo o tempo do mundo.
                - Houve em tempos uma tempestade como esta. O dia tinha amanhecido com o céu limpo mas de um momento para outro as nuvens começaram a formar-se. Um homem muito rico afastou-se da costa com alguns amigos num barco turístico. A tempestade surgiu do nada, perdendo o controlo do barco o mesmo se encalhou sobre as rochas provocando-lhe vários estragos. Numa terrível luta contra a natureza o barco começou-se a afundar irremediavelmente.
               Um pescador que regressava de um dia trabalho surpreendido também pela tempestade, no entanto mais preparado para ultrapassá-la, avistou os destroços e escutou ao longe o grito das pessoas.
               Lutando contra todas as possibilidades ele mergulhou sobre mar, nadou com todas as forças e alcançou um local onde pedaços de madeira e restos do barco boiavam dançando por entre as ondas rebeldes. Recuperou o fôlego e entregou-se ao fundo do mar. Alguns corpos emergiam do abismo sem vida, contornou-os até que alcançou o barco nas profundezas do mar. Por entre os vidros de um compartimento observou um pequeno espaço onde uma criança recém-nascida boiava deitada num berço. A água entrava rapidamente o que lhe dava pouco tempo. Partiu um vidro que se rachou, a força da pressão estilhaçou-o em vários sentidos atingindo-o em várias partes do corpo, nomeadamente os olhos.
                Qualquer homem vulgar teria desistido por aquela altura, teria lutado para salvar a sua vida, mas aquele homem persistiu e momentos mais tarde emergiu sobre as ondas com a criança nos braços.
                Foi a única vida que conseguiu salvar, chorou amargamente por ter fracassado para com os outros quando foi encontrado pela polícia marítima.
                Ao fim de três dias sobre cuidados intensivos num hospital aquele homem veio a perder a vista completamente.
                A sua história nunca foi contada, nunca passou nas notícias, a única referência que se soube foi da ilustre família que perdeu a vida em alto mar. As pessoas já não se interessam por heróis, já não acreditam em contos de fada. Preferem os mexericos, os pobres da sociedade, a realidade cruel deste mundo decadente.
                - Se nunca foi contada como é que soubeste?
                - Porque graças a ti, hoje estou vivo!
                O cego permaneceu em silêncio atónito sem palavras, deixando que o estranho continuasse.
                - Procurei-te por todo o mundo, tenho uma dívida por pagar, e na minha família sempre pagamos as nossas dívidas.
                - Não me deves nada rapaz. Vive apenas e goza essa vida para que o meu sacrifício não tenha sido em vão.
                - Se o fizesse não seria muito diferente de todos os outros que se esqueceram de ti.
                - Não tem nada que me possas dar que eventualmente mude algo na minha vida.
                - Vou dar-te dois olhos novos. É uma cirurgia dispendiosa mas a minha dívida não tem preço, quando recuperares terás formação para trabalhar na minha empresa e nunca mais voltarás a dormir na rua ao som da chuva. Por mais que esse som nos toque na alma e nos consuma na sua magia.
                - Não sei o que dizer!
                - Não precisas de o fazer. A vida ensinou-me muito, tal como a nunca me arrepender de todo o bem que fizer, mesmo que o mundo não o reconheça. A isso, chama-se ser nobre. Um dia tu salvaste a minha vida. Deixa que salve a tua hoje.
                A chuva parou lentamente, vestígios do sol despiam a escuridão com os seus raios de luz, o estranho sentou-se lado a lado com o cego observando o arco-íris que surgia no horizonte.
                - Como é que ele é... O nascer do sol?
                - Hum… É magnífico! Simplesmente magnífico.
                O dia amanheceu sobre as ruas molhadas e desertas, sobre o palco de dois desconhecidos. Um contemplava-o com o olhar, outro com o coração.

(Joel Flor)

sábado, 16 de junho de 2012

A Queda da Estrela

           Maria viu com os seus próprios olhos esverdeados, a estrela que dançava por entre as demais na escuridão da noite como um pirilampo endiabrado querendo dar nas vistas.
Era uma daquelas noites quentes de verão em que o perfume do sol permanece na sua ausência. A estrela permanecia inquieta, escondia-se ocasionalmente entre as nuvens mas logo tornava a esbanjar a sua presença numa magia espontânea. Ela permaneceu indiferente até que notou algo estranho, aquela forma dançante de luz começou a crescer, ganhando proximidade e a sua presença não pode mais ser ignorada. Desceu como um relâmpago sobre os montes provocando um enorme clarão sobre vários quilómetros, como se o sol tivesse despertado por alguns segundos.
Incrédula, ela observa tudo ao seu redor mas estava só, não havia ninguém para partilhar aquela visão extraordinária e terrível. O seu coração batia forte e incansavelmente num ritmo que lhe cortava a respiração. A sua mente estava dispersa, perdida, entre a incredulidade e o raciocínio. Então correu ao encalço daquela luz que começava a se apagar entre os montes, se encolhendo sobre a escuridão. Alcançou-a depois de uma corrida interminável, mas susteve-se quando sobre a terra, sobre um círculo de fogo, um anjo chorava a sua queda.


                                                                                                                       (Joel Flor)