sábado, 19 de fevereiro de 2011

Irmãos de Armas

O céu… tão distante, como se o mundo tivesse subitamente ficado mais pequeno. O som da guerra se afogou num rio de sangue numa constante neblina que ocultava a noite e o dia, permaneço deitado, sucumbido perante os meus inimigos sem força, sem vida, completamente vazio como uma criança que enxerga pela primeira vez a luz do mundo, assim estava eu, sem memória…
Cinco meses antes, meados de Dezembro de 2002, eu vivia com os meus pais no estado estado da Califórnia, cidade de São Francisco, estava apaixonado pela miúda dos meus sonhos e pretendia-mos casar. Eu tinha recentemente ingressado na força aérea como pára-quedista, o sonho de ser piloto tinha ficado pela metade, tinha vinte e dois anos e chamava-me Jonh Caine. Passei toda a minha vida em São Francisco e da minha infância carreguei as minhas amizades que me acompanharam pela vida e pela carreira militar. O Anthony, o Thomas, o Christian e o Alex. Tínhamos os nossos desentendimentos mas a vida tinha nos dado uma certa ligação que não quebrava. Algumas pessoas entram na nossa vida, fazem parte dela mas ao fim de algum tempo seguem o seu rumo. Nós não, estávamos agregados uns aos outros.
Todas as sextas-feiras tirávamos á sorte para escolhermos o motorista que iria se manter sóbrio a noite toda para nos levar em segurança para casa, aquela sexta-feira não foi diferente. Estava-mos a começar a noite sentados num bar, a responsabilidade daquele dia tinha caído ao Alex que estava mal-humorado. As pessoas falavam alto e bebiam até que a determinado momento na televisão o presidente George Bush iniciava um discurso ao povo americano.
Medidas tinham sido tomadas para desarmar o Iraque e libertar o seu povo da tirania, o presidente Norte-americano anunciava o inicio de uma guerra ao terrorismo, aqueles cinco rapazes sabiam que para eles a vida iria tomar um novo rumo, não demonstraram receio, estavam ansiosos para mostrar o seu patriotismo, influenciados pela sociedade, por demasiados filmes que inspiram á guerra, foram os primeiros a dar o primeiro passo pelo seu país.
Os estados Unidos invadiram o Iraque no dia 20 de Março de 2003, numa operação comandada pelo presidente Norte-americano Bush e o primeiro ministro britânico Tony Blair numa aliança conhecida como a Coalizão. As forças terrestres da coligação norte-americana e britânica avançaram bastante sobre o terreno iraquiano até ao dia 25 de Março. No dia 26 de Março a frente norte do ataque foi aberta pelas forças aerotransportadas á região norte controlada pelos curdos. Foi naquele dia que os meus pés pousaram sobre o Iraque, foi acompanhado de centenas de pára-quedistas que eu me apercebi que já não estava mais em São Francisco. Escutava o som dos disparos das milícias, um som ensurdecedor de fogo e morte, algo que havíamos sido preparados para enfrentar mas que nunca pensamos que o teríamos de fazer, todos temos uma ideia da guerra, mas senti-la bem perto de nós è uma visão aterradora, procurava encontrar os meus companheiros para montarmos uma defesa. Tinha-mos aterrado com artilharia leve, estávamos espalhados pela região dos curdos que nos receberam com bastante hostilidade. Lembro-me do momento que tirei a primeira vida, um jovem devia ter os seus dezasseis anos corria na nossa direcção com uma metralhadora, mal sabia carregá-la em condições, demos lhe ordem que parasse e pousasse a arma, o mesmo não o fez, creio que estava tão disposto a morrer pelo seu país como alguns de nós, por certo nem sabia o motivo pelo qual lutava, nós ao fim de alguns dias não sabíamos mais também, entramos num país esperando um confronto militar mas só deparávamos com milícia e civis, quando chegamos á cidade de Tikrit, aconteceu algo que não esperávamos, tínhamos nos saído bem até aquele momento, parecia um jogo fácil de computador, tentávamos quebrar um pouco o ambiente na certeza que daqui umas semanas estaríamos todos no bar a beber umas cervejas e a contar os nossos feitos heróicos as miúdas da cidade, foi então que no meio daquela conversa o Christian pisou uma mina, a explosão estilhaçou a sua perna esquerda levantando o seu corpo a três metros do chão, o Thomas foi atingido com os estilhaços no rosto ficou cego, teve de ser socorrido. Por cima dos prédios começamos a ser recebidos com disparos de milícias, eu arrastei o Christian para dentro de uma casa, ele gritava dum modo que eu nunca tinha ouvido um ser humano gritar, um enfermeiro da nossa unidade conseguiu alcançar-nos dando-lhe uma dose de morfina para mantê-lo calmo. Perguntando-lhe se poderíamos salvá-lo ele só me respondeu, - Fica com ele. – Senti o corpo do meu amigo que me tinha acompanhado toda a vida começar a ceder, a sua respiração ia diminuindo como o sopro de uma criança quando embalado no seu berço. Senti a vida dentro dele o abandonando, tamanha era a força com que o segurava. Olhou me nos olhos uma última vez e suas palavras foram: “cuida-te”. No dia seguinte o Thomas e o corpo do Christian tinham ganho um bilhete para casa. O Thomas nunca mais voltou a enxergar…
No dia 9 de Abril chegamos a Bagdad, tomamos conta do aeroporto, as forças militares não ofereceram resistência, tínhamos sacrificado tanto e o principal alvo nem se dispôs a lutar, o presidente iraquiano havia escapado, estava escondido. As armas de destruição maciça que deram origem á guerra nunca foram encontradas, nem comprovaram que alguma vez tivessem sido sequer criadas, a ligação do presidente com a Al-Qaeda também não foi provada, começava a desacreditar em tudo aquilo que tínhamos feito, estávamos a justificar um acto de terrorismo com outro acto de terrorismo, não brincávamos uns com os outros como era de costume, falando de casa e dos nossos hábitos, tínhamos todos a consciência pesada, lembrava-me da minha namorada. Como poderia um dia retornar aos seus braços sentindo-me um monstro. Nas ruas o povo protestava bastante, nos insultavam, eram milhares e homens e mulheres, outros por outro lado nos cumprimentavam e agradeciam por termos quebrado a ditadura do tirano.
Ouvia-mos na televisão o presidente dar-nos os parabéns pela grande vitória, fazia promessas ao povo iraquiano, a missão agora era mantermos a paz, devolvermos o Iraque ao seu povo e capturarmos o presidente, eu que pensava que tinha terminado o pesadelo.
Ouvia-mos principalmente de noite os tiros das armas das milícias procurando nos afrontar. Num daqueles dias tínhamos recebido a informação de uma fonte sobre uma possível reunião entre as cabeças fortes do Saddam, a missão era interceptarmos os planos e capturarmos aqueles homens. Sai-mos pela noite e cercamos aquela vivenda isolada, tinham homens armados rondando a casa, teríamos de aniquila-los em silêncio para podermos nos aproximar e descobrir o motivo da reunião. Eu estava vigiando a rua, procurando manter os civis á distância, ao longe uma criança dos seus doze anos de idade caminhava na minha direcção, no meu pobre árabe tentei dizer-lhe que fosse por outro caminho, ele olhou-me nos olhos fixamente, não conseguia enxergar uma alma através daquele olhar vazio, tinha uma cicatriz enorme que apanhava a sua testa, o seu olho esquerdo até a sua boca desfigurada, parecia o golpe duma faca, senti pena daquela criança sem um futuro, sem sonhos. Pela primeira vez naquele lugar senti que pessoas como nós poderíamos tentar dar um futuro aquele povo, não força-los a escolher aquilo que achamos ser melhor para eles mas sim dar-lhes uma escolha. O Alex aproximou-se de mim a uns metros murmurando baixinho: - John! Temos de avançar. - No momento que me virei para ele aquela criança puxou de uma arma e disparou contra mim. Coloquei de imediato a minha mão sobre o peito á medida que sentia o sangue escorrendo pelo meu corpo. O Alex apontou de imediato a sua arma gritando para que aquela criança jogasse a sua para o chão. Tentei dizer ao Alex para não disparar, estava cansado de pagar sangue com sangue, mas a vida tinha me ensinado nestes meses que neste campo não existe esperança, no primeiro deslize em que acreditei nela, fui atraiçoado pela minha inocência, a guerra não garante a paz, a guerra fomenta guerra, fomenta ódio, fomenta vingança. O Alex atingiu aquela criança com um tiro mortal, aquela altura com o som do primeiro disparo, a missão de interceptar os planos iraquianos foram por água abaixo, a missão de capturar os líderes foi concluída com êxito. O Alex tentava-me carregar mas para sua infelicidade eu sempre fui o mais pesado de nós todos. Correu para buscar auxílio enquanto eu me esvaia em sangue deitado sobre aquele chão frio, não conseguia parar de pensar no Christian, no facto de ele nunca mais voltar ver a sua terra. De nunca ter podido casar e ter filhos, envelhecer sentindo as ondas do mar desfazendo-se sobre a areia da praia. Da dor que deveria estar no coração dos seus pais naquela altura. Do facto absurdo de termos perdido tanto e não termos conseguido nada, ouvia as vozes dos meus companheiros cada vez mais neutras, como um murmuro ecoado no vento. Sentia uma paz enorme manchada num cenário de guerra. Comecei a perder a noção de onde estava. Sentia os elementos me consumirem me fazerem retornar a eles, como se de eles tivesse sido gerado.
O céu… tão distante, como se o mundo tivesse subitamente ficado mais pequeno. O som da guerra se afogou num rio de sangue numa constante neblina que ocultava a noite e o dia, permaneço deitado, sucumbido perante os meus inimigos sem força, sem vida, completamente vazio como uma criança que enxerga pela primeira vez a luz do mundo, assim estava eu, sem memória.
Foi então que senti o Christian se aproximando de mim, ao estranhar vê-lo perguntei: - Estás vivo? – Olhando-me tranquilo ele respondeu-me: - Achas mesmo que eu deixava os meus irmãos para trás? Anda vem comigo.
- Para onde vamos? – Perguntei eu…
- Vamos numa viagem nós os dois –
- O Alex e o Anthony? –
- Eles vão ter de continuar sozinhos, mas não te preocupes, nós estaremos sempre por perto para cuidar deles. –

A dor que sentia no corpo desapareceu aos poucos, sentia-me leve, logo me pus de pé. Comecei a caminhar sem sentir os meus pés tocar no chão. Naquele dia vi o meu último dia de guerra. Os meus dois amigos continuaram naquele país até Agosto de 2010. O meu nome é John Caine e esta é a minha história.



- Fim –


Uma história de Joel Flor
19-02-2011

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

O Livro "Espírito Selvagem"

Esta è a história de um homem que perde a sua namorada num desastre de carro, mas no seu subconsciente a sua mente dá-lhe uma segunda oportunidade.

Preso num estado vegetativo dentro de um hospital maniaco-depressivo ele vive uma segunda vida dentro da sua mente, um ciclo que um médico psiquiatra tenta quebrar interagindo no seu mundo. Por fim acaba por vir a conhecer o homem brilhante que o paciente poderia ter sido e a vida maravilhosa que o prende tão dramaticamente ao seu mundo.

Um romance poderoso onde a realidade e a ficção definem o poder da mente humana.

Livro "Espírito Selvagem" lançamento dia 05 de Março.


Uma obra de Joel Flor