quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Jornada



Deleita silenciosamente os seus ossos cansados no velho cadeirão da sala. A lareira que teria levado algumas horas para alcançar o triunfo do fogo, esbanjava agora o consolo do seu calor como um abraço afável onde todos os percalços do dia se dissolvem graciosamente sobre as chamas.
O seu corpo permanecia imóvel, o único sinal de vida que expressava eram os olhos que viajam pelos cantos da casa, pelas recordações em cima das prateleiras, por entre livros, móveis, fotografias de rostos que permaneciam apenas por entre o perfume amargo da saudade. O silêncio trazia de volta as recordações e como ela detestava aquele silêncio. Poderia um vendedor de TV por cabo entrar de rompante mesmo que o velho televisor avariado há oito anos encurtasse a sua visita. Poderia um parente distante aparecer junto à porta com uma mala entre os dedos. Podia na pior das hipóteses cair uma tempestade, talvez o som da chuva e do trovão a consolassem com a sua melodia, mas até a brisa da tarde descansava no seu recanto.
Esse era o problema do silêncio, quando ele absorve a nossa vida levando tudo e todos, o mundo e a natureza acabam também por se esquecer de nós, até que as nossas memórias morram connosco e a nossa história se desfaça entre as cinzas como se nunca tivesse existido. “Cinzas ao vento”, este era um dos inúmeros pensamentos que a perturbavam.
Na história da sua vida, os três filhos teriam partido para a guerra e não voltaram, o seu marido teria adormecido para sempre na sua cama, num sono profundo e pacífico. Um homem de consciência tranquila sobre o legado que teria dado aos filhos e da história que teria deixado para trás.
Parte dela teria morrido com eles e a pessoa que ela foi em tempos era apenas uma sombra. A casa que em tempos era inundada pelos sorrisos das crianças que cresciam aos seus pés. Dos churrascos de domingo dos amigos que despareceram com o tempo. Essa melodia graciosa e acolhedora, o som da vida estava presente naqueles retratos, ela permanecia como a última nota de uma música. Como a última frase de um romance com um final óbvio.
O som de um veículo surge no horizonte, o seu vulto movimenta-se por entre as persianas de madeira contornando a luz do por do sol quase extinto. O silêncio è rompido pelo som das rodas que se sustém junto à sua porta, mantendo-se apenas o som de um motor que trabalhava como um relógio.
Ela teria tido aquele mesmo sonho vezes sem conta, que um veículo trouxesse as suas crianças de volta para os seus braços, até que o sonho morreu com o fim da esperança.
Levantou-se dolorosamente sobre os seus ossos cansados apoiando-se sobre as suas pernas. Escutou vozes do lado de fora. O ronco do motor se afastou lentamente à medida que um homem batia à porta. Aproximou-se exausta tentando reconhecer os traços que se desenhavam por entre as cortinas da porta. Sem pensamentos prévios foi recebida pelo sorriso do seu filho mais novo, estava envelhecido, teria permanecido durante dez anos como prisioneiro de guerra. Acolheu-a nos seus braços durante alguns minutos até que entraram os dois e conversaram durante horas.
Era tempo de escrever uma nova história, de seguir um novo percurso. Existem coisas na nossa vida que parecem incontornáveis, fins que parecem previsíveis e sonhos que parecem maldições, mas num universo em constante movimento a única certeza que é certa, é não termos certeza de nada. Que devemos acreditar até ao último segundo. Que devemos manter sempre acesa, a luz na escuridão.
 
 
 
(Joel Flor)