sábado, 3 de novembro de 2012

O som da vida - Parte II


             Alice estava um tanto inquieta no final daquela tarde de Outono, teria discutido com a sua mãe a respeito de uma festa que pretendia ir durante todos os dias daquela semana. Lutava irremediavelmente contra a sua vontade que a proibia de sair de casa, “Tens dezasseis anos, não vais a lado nenhum!” Aquelas palavras da sua mãe fluíam como um eco imortal na sua cabeça, como uma cassete que virara vezes e vezes espezinhando a sua consciência.
Geralmente os confrontos com a sua mãe eram conversas curtas, mas aquela era a festa da sua vida, o rapaz de quem gostava iria lá estar, ela tinha a certeza de que se não fosse, o perderia para sempre. Acreditava que o seu destino estava traçado, e a escolha dos seus passos independentemente da idade que tivesse eram seus para serem escolhidos quando bem entendesse, ninguém tinha o direito de lhe roubar os sonhos.
Teria garantido à sua amiga Jessica que estaria à porta da sua casa as 21 horas daquele dia, mesmo que o céu desabasse sobre a sua cabeça, e aquela promessa não iria quebrar por nada deste mundo.
O sol desaparecendo lentamente por cima do telhado dos seus vizinhos apenas aumentava o seu nervosismo, penteou os seus longos cabelos loiros, vestiu um vestido vermelho e lentamente pintava os seus lábios com um batom da mesma cor. Aquele gesto adulto ainda lhe era estranho, lentamente ia conhecendo uma nova figura diante do espelho, a ideia de parecer cinco anos mais velha agradava-a bastante. A porta abriu-se de rompante, a mãe observava-a de semblante fechado, apesar do incómodo ela tentou permanecer indiferente…
- É assim que vai ser então?
- Não sou mais uma criança, todas as minhas amigas saem quando querem e não dão satisfações a ninguém. Acho que estas a viver no século errado. Não vou mais desperdiçar esta fase da minha vida por causa das tuas ideias.
- Muito bem, no entanto a algo que deves saber sobre essa vida que julgas conhecer tão bem. Decisões de peso têm as suas consequências, tiveste toda a tua vida quem as assumisse por ti. Se saíres por aquela porta hoje, não voltes a entrar, nunca mais.
Alice estremeceu perante a dureza das palavras que ouvia, mas manteve-se fiel à sua promessa, assim que a sua mãe saiu do quarto tentou focar-se apenas na festa, o demais haveria de decidir mais tarde quando fosse oportuno.
Andava de um lado para o outro dentro daquelas quatro paredes, os minutos passavam lentamente, a noite teria consumido a luz do sol por detrás daquela janela do seu quarto, não suportava mais aquele nervosismo e optou por sair uns minutos mais cedo. A sua mãe estava no seu quarto, a televisão da sala transmitia um recital infantil no entanto não tinha telespectadores à exceção do gato Matias que bocejava entediado, deitado no sofá. Cruzou aquele corredor esperando ouvir um grito a qualquer momento mas tal não aconteceu. Assim que colocou os pés fora de casa e a porta se fechou por trás. Os nervos acalmaram, suspirou fundo e seguiu por aquela rua silenciosa.
Um grupo de bêbados passou por ela com alguns gracejos, era uma novidade ser mulher, ignorou-os e acelerou o passo, a casa de Jéssica ficava a pouco mais do que quinhentos metros, a rua era agora mais isolada, teria passado por ela durante anos à luz do dia, no entanto naquela noite parecia outro lugar. Ouviu um ruído estranho, quando se preparava para voltar um braço forte prendeu-a de costas enquanto a outra mão tapava-lhe a boca, tentou-se debater inutilmente mas perdia os sentidos lentamente, um lenço na sua boca obrigava-a a respirar algo que a faria adormecer. Sentiu um pavor enorme, perdeu as forças e mergulhou inconsciente nos braços daquele estranho.
Algumas horas mais tarde despertou na traseira de uma carrinha de caixa, uma pequena janela iluminava aquele compartimento, com a luz do sol que ia se erguendo no horizonte. Do outro lado da estrada um carro da polícia cruzou com a carrinha mas seguiu o seu caminho. Sentiu vontade de gritar por auxílio mas não tinha forças, estava apavorada, e uma tentativa infrutífera poderia provocar a sua morte, então encolheu-se sobre uma coberta, tremendo e chorando, a única pessoa em quem conseguia pensar era na sua mãe. 

A polícia iniciou as buscas na manhã seguinte quando a mãe de Alice ligou à Jéssica e a mesma respondeu que a Alice nunca teria aparecido. Era uma cidade pequena, o acontecimento gerou um impacto profundo, ao fim de uma semana as buscas não produziram qualquer resultado ou pista. A Alice poderia estar em qualquer lugar agora.
Estavam em março de 2002, foi finalmente em novembro do mesmo ano que encontraram a cena do crime, uma cave funda por de trás de uma quinta, um passante teria visto um homem descarregar um corpo embrulhado numa manta. No dia anterior uma jovem de dezanove anos teria sido dada como desaparecida. Pela altura que as autoridades chegaram ao local foi tarde demais para lhe salvar a vida. Sandro Valêncio de quarenta e dois anos de idade foi detido e julgado pelo homicídio qualificado de vinte e duas mulheres, apenas o corpo da última mulher foi encontrado, no entanto através de análises de ADN conseguiram identificar a passagem de Alice por aquele lugar. Confessando o assassino também a sua morte.
 

A parte final da história era redigida pela criança, tendo Alice conhecimento apenas da forma brutal como teria sido assassinada. Sentou-se lentamente sobre a calçada, por mais frustrante que fosse, as respostas não traziam soluções no seu caso.
- Chamo-me Alice!
- Sim, esse foi o teu nome um dia, e esta a tua história.
- Quantos anos passaram?
- Passaram seis anos, por isso é que não conseguiram ajudar-te na esquadra. O processo foi arquivado quando o assassino confessou. Ninguém anda á tua procura há muito tempo.
- Não entendo, o que devo eu fazer?
- No coração dos homens todos os caminhos são evidentes, quando são corrompidos pela natureza humana, começam logo a surtir as dúvidas. Tu sabes o que tens de fazer, segue o caminho que te trouxe de volta este mundo.
- Mas…
A pergunta sucumbiu perante a luz que abraçava o seu entendimento, a criança desapareceu deixando-a novamente. Ela sabia que o tempo era limitado, que o privilégio que lhe tinham concedido teria de servir o seu propósito, e naquele momento ela sabia exatamente o que tinha de fazer. Teria de se reconciliar com a sua mãe, para que as duas seguissem os diferentes caminhos em paz.
Caminhou durante horas por aquela estrada longa, vendo o sol iluminar o seu caminho lentamente, começou a reconhecer bairros, lojas, e pouco a pouco algumas pessoas que não notavam a sua presença. Sentia-se como um fantasma vagueando o seu universo perdido, passou pela porta da Jéssica, teria agora vinte e três anos, talvez ainda morasse com os pais, quem sabe teria encontrado a sua cara-metade naquela noite e estivesse agora casada, a vida segue milhões de destinos quando temos imaginação para nos perdermos divagando diversos sentidos.
Ao fundo da rua a porta da sua casa desenhava todas as recordações da sua infância. Aproximou-se lentamente, a cidade dormia, eram seis horas da manhã, susteve o passo diante da sua porta. Procurou o vaso onde a sua mãe sempre escondia uma chave suplente e notou que os velhos hábitos mantinham-se vivos. Abriu lentamente a porta e entrou, o velho gato Matias que não gostava de estranhos reconheceu-a de imediata esfregando-se nos seus pés, acariciou-o e seguiu pelo corredor. A porta do quarto estava entreaberta, antes que avançasse denotou vários frascos de comprimidos, antidepressivos, comprimidos para dormir. O cenário evidente revelava que os últimos anos não teriam sido fáceis.
Abriu lentamente a porta deixando um pequeno rastro de luz iluminar a escuridão do interior. A sua mãe estava deitada por debaixo de um lençol, dormia profundamente, todos os cantos da casa mostravam falta de asseio, percebeu que as limpezas não eram tão frequentes como antigamente. Certamente continuava solteira desde o falecimento do seu pai e os cuidados pessoais teriam perdido a sua prioridade, como mulher e como ser humano.
Sentou-se lentamente sobre a cama com medo de acordar, apesar do efeito dos comprimidos ser forte. Acariciou-lhe lentamente o cabelo que começava a ficar grisalho, talvez já fosse antes no entanto agora não se dava ao trabalho de o disfarçar.
A voz daquele ser que a acompanhava ocasionalmente sobre a forma humana, pronunciou-se ao seu ouvido…
- Fala o que tens de falar, ela vai ouvir e tudo produzirá o devido efeito.
Alice comoveu-se antes que as palavras saíssem, as lágrimas caiam lentamente pelo seu rosto…
- Mãe, eu sei que me consegues ouvir, estou aqui porque quero que saibas que lamento muito tudo o que aconteceu. Lamento ter sido tão egoísta, lamento não te ter apoiado quando o pai partiu, lamento não ter-te abraçado todas as vezes que te vi chorar. Perdoa-me por ter-te deixado naquele dia, a vida ensina-nos através dos nossos erros, mas nem todos tem uma segunda oportunidade para se redimirem. Tu tens a oportunidade de uma nova vida, algo que eu já não tenho. Não desperdices a vida, sobrevivendo presa ao passado. Agarra os dias vindouros com as duas mãos. Luta pela tua felicidade, por mim e por ti, para que eu possa partir em paz, sabendo que haverá apenas saudade e não remorsos. Perdoa-me por tudo, para que eu possa também, perdoar-me a mim mesma.
Abraçou aquele corpo quente, mesmo dormindo as lágrimas caiam do rosto daquela mulher. Alice sentiu-se leve, a sua missão no mundo estaria cumprida, era tempo de regressar. Levantou-se lentamente e seguiu o seu caminho. Passando por um espelho observou-se de relance por um momento, não se tinha apercebido até aquele momento que tinha envelhecido como se tivesse a idade que teria viva.
Lá fora um homem de boa aparência observava-a, tranquilo como se a conhecesse, e logo ela entendeu que a morte a aguardava numa nova forma. Aproximou-se dele…
- Chegou a hora de regressarmos.
- Então a minha missão está cumprida?
- Sim. – O homem observava-a sabendo que a pergunta transmitia alguma falta de convicção, estava em paz, mas continuava triste.
- O assassino é o único homem que sabe que morri, mesmo que tenha confessado, o meu corpo nunca foi encontrado.
- Sabia! Ele morreu há dois anos atrás, assassinado numa prisão. Até os presos tem mães, filhas e irmãs. Um homem como aquele não seria bem aceite em lado nenhum. Foi encontrado morto na sua cela. A justiça sempre chega a todos.
- Então ninguém vivo pode afirmar que realmente eu fui assassinada, amostras de sangue não provam nada.
- Onde é que queres chegar?
- Eu queria uma segunda oportunidade!
- Já a tiveste!
- A minha mãe precisa de mim.
- Todos precisam de alguém, mas o mundo não é perfeito.
- Tu observas a humanidade desde o princípio dos tempos. Tem um pouco de fé em nós, eu sei que podes fazer algo por nós, podes dar-nos algo em que acreditar.
- Isso ultrapassa-me, sou apenas um guia.
- Por favor!
- Consegues ouvir este som, esta melodia? É o som do silêncio, do fim. Eu chamo-lhe “A Melodia do silêncio”, é como um consolo divino que sentimos quando deixamos este mundo em paz, o som não significa o fim, significa que está livre, perdes o mundo mas ganhas o universo. O som está a chamar por ti.
A Alice aproximou-se do homem segurando-lhe na mão, colocou sobre o seu peito, junto ao seu coração. Consegues ouvir este som? O seu ritmo, que pulsa e estremece o nosso ser? Este é “O som da vida”. Eu escolho a vida, deixa-me viver!
O homem observou-a durante alguns momentos, lentamente esboçou o seu primeiro sorriso durante aquele percurso e partiu. A Alice manteve-se atónita durante alguns momentos, contemplou aquele mundo ao seu redor, como se pela primeira vez ele lhe pertencesse. Entrou d1entro de casa novamente, dirigiu-se ao seu velho quarto. Permanecia intacto. O frasco de batom continuava aberto em cima da sua mesa. A janela do seu quarto pintava o mesmo quadro que conhecera toda a sua vida. Deitou-se lentamente sobre a sua cama encolhendo-se sobre os cobertores, perdida entre uma exaustão que teria sido combatida até momentos atrás pela adrenalina. Cedeu e adormeceu num sono profundo.
 

Na primeira página de todos os jornais nacionais uma notícia pulsava em destaque: “Jovem desaparecida aparece ao fim de seis anos.” O mundo alegrava-se na felicidade de uma mãe, por momentos esquecia-se dos seus problemas, da sua vaidade, da sua ignorância, da sua intolerância, do seu egoísmo. Por momentos recordava o que era ser humano e viver cada dia em virtude de uma causa nobre, de um verdadeiro propósito.

 
 
 

Fim

 
(Joel Flor)