
Suspiros
e murmúrios quase extintos ecoavam por entre o vento contando histórias de
passados, sonhos que produziram lembranças num momento sublime que os meros
mortais conhecem como vida.
O
seu espírito vagueava sobre aquela paisagem sem compreender a sua natureza a
sua existência, desconhecia o seu nome o seu princípio e o seu fim, sabia de
certa forma que o seu corpo estava morto, não conseguia produzir qualquer som
mas meditava num vazio, não sentia tristeza ou alegria ou qualquer emoção
humana. Tentava recuperar qualquer lembrança de uma existência no entanto todos
o dias lhe era dado a conhecer somente a sua solidão.
Sabia de uma forma incompreensível
que a determinado momento por um indefinido tempo teria sido alguém, teria
vivido outra vida. A sua natureza era sublime, perfeita, mas o seu
desconhecimento de todas as coisas e a sua solidão sobre aquele universo
levavam-no a desejar a simplicidade de uma vida sujeita a dores e tormentos num
mundo caótico em constante movimento.
Então desejou, desejou de uma forma
tão poderosa ser alguém, sentir, tocar, correr descalço sobre a terra húmida,
sentir o toque da chuva sobre a pele, o sopro do vento a agitar os seus cabelos
que, o universo atendeu ao seu pedido. Sentiu-se arrebatar como que aspirado às
profundezas da terra e num breve instante despertou, como se há muito tivesse
adormecido.
Estava deitado sobre capim, sentia
calor, ao fundo escutava vozes compulsivas e incompreensíveis de crianças que
expressavam as suas naturezas alegres e rebeldes. O som parecia estranho mas ao
mesmo tempo natural, quase óbvio. Levantou-se lentamente observando as suas
mãos finas dedos compridos e delicados, correu-os pelo seu rosto. O toque era
suave e transmitia uma sensação de conforto. As pernas balançavam como se nunca
tivessem antes sido usadas. Cabelos loiros voavam de uma forma rebelde diante
dos seus olhos. Caminhou com alguma dificuldade até à beira de um rio, as águas
estavam tranquilas e transmitiam nitidamente a imagem do seu reflexo. Ele
percebeu que na verdade era “Ela”, uma mulher bela, elegante de traços finos e
esbeltos estendia-se à sua frente, desconhecia as suas vestes que pareciam
apropriadas e desconhecia a sua imagem, quase certa de que em outra vida nunca
teria sido a sua.
Caminhou lentamente por entre as
ervas molhadas que abraçavam o rio, observava agora as crianças de perto que a
ignoravam por completo, perdidas nos seus afazeres, ausentes do complexo mundo
exterior dos adultos.
Um
homem observava-a de forma curiosa, apercebeu-se nitidamente da diferença entre
géneros e das suas atrações, reconheceu a sua própria beleza e o efeito que
exterior que produzia aos demais. Estava completamente perdida no tempo e no
espaço e até que a natureza do seu retorno se revelasse teria de permanecer
discreta, tentando ocultar o efeito da sua aparência enquanto desvendava o
puzzle da sua existência.
Tentou
afastar-se do contacto humano caminhou durante longas horas por campos,
estradas, vilas, no entanto apenas se conseguiu sentir invisível entre as
multidões das cidades maiores, onde todos eram estranhos entre eles.
Uma
coluna de prédios estendia-se pela avenida onde os carros circulavam em dois
sentidos, no passeio centenas, talvez milhares de pessoas caminhavam
despercebidas de si mesmas e do mundo. Aconchegou-se num banco de costas para
um pequeno jardim e voltada para a avenida. Com um capuz cobria o seu rosto
ocultando os longos cabelos entre o blusão que trazia vestido. Tentava
construir informação coerente, mas os seus fundamentos não tinham base. A sua
história não tinha um ponto de partida e dos dois mundos que conhecia teria
dúvidas de qual seria verdadeiramente o real.
Foi
então que a voz de um homem que surgiu do nada sentado do seu lado se
pronunciou…
- É
impressionante não é?
-
Desculpe? – A sua voz intrigou-lhe mais do que a pergunta que lhe dirigia o
estranho, tocou lentamente nos seus lábios como se pudesse segurar as palavras
com os dedos. Queria comunicar mas os argumentos não existiam.
-
Refiro-me ao modo como circulam, perdidos em rotinas curtas obcecados por
projetos que nunca viram a existir, numa luta constante contra a incerteza de
um tempo, o tempo que lhes é concedido neste mundo.
Ela
soube naquele momento que a aquele estranho possuía todas as respostas, que de
certa forma também ele era parte de algo que transcendia a vida. Queria
interroga-lo com centenas de perguntas mas a sua mente não as produzia. Foi
então que se focou na questão principal e prosseguiu…
- O
que sou eu?
-
Foste em tempos, noutros tempos um deles.
- E
agora?
-
Não me perguntes a mim, foste tu que questionaste a tua origem, rejeitaste a
tua natureza por uma segunda oportunidade.
-
Isso acontece com frequência, existem mais casos?
-
Apenas com os que não estão em paz com eles próprios. Aqueles que deixaram
assuntos inacabados entre os mortais. Ou os que precisam se redimir dos seus
erros, e corrigir os seus passos.
- O
que devo eu fazer?
-
Deves aproveitar o tempo que te foi dado. Em breve irás retornar.
-
Quanto tempo tenho?
-
Muito pouco!
-
Como é que sabes tudo isto? Quem és tu?
-
Sou alguém que observou muitas gerações, que conhece a natureza humana, as suas
virtudes e as suas fraquezas. O resultado da sua imaturidade e por outro lado a
beleza da sua devoção à vida, o poder dos seus sonhos.
-
Não sei por onde começar!
-
Segue o som da música.
-
Qual som?
Olhou
para aquela figura mas a mesma já lá não estava. Tinha-se evaporado. Confusa,
começou lentamente a escutar um coro que cantava vigorosamente um canto.
Levantou-se e seguiu o som.
Estreitou-se
por uma ruela estreita e esguia, cruzou-se entre alguns olhares de residentes
locais que estranhavam a sua presença até que estacou junto de um enorme portão
em arco que estava aberto, de dentro ouvia-se um grupo de mulheres que cantava
de uma forma virtuosa um canto religioso. Enquanto se apoderava daquele som que
estremecia aquela sua natureza sentiu uma mão sobre o seu ombro. Voltando-se
uma mulher de cor, de meia-idade sorria-lhe.
-
Entra criança, vamos servir o almoço.
Denotou
que estava já por alguns momentos com uma certa má disposição, que algo a
incomodava, percebeu que não se alimentava a horas e o convite que a
enfeitiçava com o perfume do guisado fez com que cedesse sem questionar.
Teria
cerca de trinta pessoas circulando por aquela enorme casa. Ninguém a observava
como uma estranha. Por outro lado, eram muito simpáticos e acolhedores. A
senhora que a recebeu chamava-se Amélia, alguns minutos depois sentou-se do seu
lado sorrindo de uma forma que certas pessoas sorriem, tá nas suas naturezas
serem o que são e mesmo os piores trajetos que a vida por vezes impõe, não
consegue mudar a natureza que as faz sorrir quando por vezes querem chorar.
-
Minha criança! Pareces perdida, queres falar sobre isso?
-
Eu acredito que todos temos um propósito no mundo, um motivo para estarmos
aqui, mas não consigo encontrar o meu!
-
Por vezes tentamos forçar o raciocínio, quando todas as respostas estão no
coração. És jovem, não devias encontrar propósitos. Tens de viver somente, a
vida e os propósitos hão de se revelar com o tempo. No tempo certo.
-
Não estou certa do tempo que tenho!
-
Ninguém está! O segredo está em viver e deixar o tempo correr!
-
Sim mas no meu caso…
Susteve
as suas palavras, não sabia até que ponto a sua história ou a ausência de uma
poderia parecer estranha…
-
Porque não voltas para casa? Pelo teu aspeto não pareces alguém que ande pela
estrada. Deves ter alguém desesperado à tua procura.
-
Eu não me recordo de nada! Como é que eu posso saber se alguém me procura e de
onde venho?
- É
simples, tens uma esquadra de polícia a dois quarteirões daqui. Se foste dada
como desaparecida deverão ter um registo.
Assentiu
em concordância e levantou-se lentamente…
-
Obrigado pela sua hospitalidade, vou tentar descobrir alguma coisa.
Ela
abraçou a Amélia sentindo um certo conforto naquele abraço, o contacto humano
era um estranho despertar de emoções. Afastou-se lentamente acenando-lhe.
Contornou
as pequenas ruelas saindo novamente na avenida principal, existiam dois mundos
dentro daquela cidade, aquele pequeno subúrbio e aquela estrada recheada de
montras, prédios, cartazes e pessoas, centenas de pessoas elegantes que
circulavam seguindo as suas rotinas. A esquadra estava junto a uma esquina bem
visível. Aproximou-se timidamente, cruzou-se com dois agentes que passaram por
ela despercebidos. Alguns metros mais a frente outro agente a observava
curioso, continuou passando por ele e entrou dentro do edifico. Várias pessoas
trabalhavam entre papéis, telefones e computadores, na maioria fardados, outros
pareciam civis. Dirigiu-se a um enorme balcão, do outro lado um agente jovem
sorriu-lhe.
-
Precisa de ajuda menina?
-
Sim… Queria tentar descobrir se existe alguém a minha procura. Perdi a memória.
Não me recordo nem do meu nome.
Intrigado
e desvanecendo lentamente o sorriso o agente acompanhou-a a um corredor onde
pediu-lhe que aguardasse. Alguns minutos passados foi encaminhada para outro
agente, um homem dos seus cinquenta anos, sentou-se junto a uma secretária. Entre
vários papéis tinha o retrato do agente com a esposa e duas filhas, a imagem
tocou-a, mas logo retomou a sua atenção.
-
Já procuraste nas tuas roupas se tens algum documento, algum contacto?
-
Os bolsos estão vazios.
-
Muito bem, eu vou tirar-te as impressões digitais, uma foto de rosto e outra de
perfil. Se quiseres um café quente podes usar aquela máquina, isto vai demorar
um pouco vou correr todas as imagens de pessoas desaparecidas nas últimas 48
horas, parece fácil mas infelizmente são mais do que imaginas. Pode ser que
tenhamos sorte, e entretanto vou emitir um ficheiro com os teus dados e
partilhar com as outras esquadras. Há de se conseguir alguma coisa. Sempre se
consegue, tem é de se ter paciência.
-
Obrigado.
E
assim esperou, esperou e adormeceu estendida naquele banco desconfortável até
que as dores quebrassem o sono contornando a embriaguez do cansaço. O agente de
nome Carlos estava de pé diante de si, lá fora o sol tinha-se posto dando lugar
a uma noite fria e gélida. A falta de conforto parecia a melhor alternativa que
tinha perante a escuridão das ruas agora um pouco mais desertas.
-
Lamento, verifiquei todos os casos atuais de desaparecimento nas últimas 72
horas, não existe ninguém à tua procura. São agora 22 horas tenho de ir embora,
suponho que não tenhas onde ficar certo?
-
Suponho que não.
-
Tem uma pensão do outro lado da rua, se quiseres posso-te alojar lá e retomamos
amanhã cedo. Se te sentires animada, podes sempre passar aqui a noite num dos
computadores, vendo casos mais antigos. Vão andar alguns agentes por aí
qualquer coisa que precises, podes pedir-lhes.
-
Não acredito que consiga dormir com tanta coisa em que pensar, fico aqui.
-
Muito bem, se não tiveres sorte pode ser que amanhã já tenhamos notícias.
Assentiu
com um leve sorriso, tinha tido sorte com as pessoas que cruzaram o seu caminho
nas últimas horas, já era algo de valor. Pesquisou vários casos sem sucesso, ao
fim de quarenta minutos os olhos estavam cansados e resolveu sair um pouco.
Mergulhou naquela noite escura e fria. As respostas que precisava, a busca pela
verdade, ninguém desde mundo lhe podia dar.
Como
se alguém escutasse a voz do seu coração uma criança que estava sentada no
passeio envolta em trapos dos seus doze anos de idade dirigiu-lhe a voz.
- Os
mistérios do mundo são tão pequenos quando o ser humano se debruça sobre os
mistérios da sua alma, da sua própria existência. No entanto contra todas as
possibilidades sem qualquer fundamento ele insiste na procura da verdade.
-
Não é o certo? Buscarmos sempre a verdade?
- A
verdade sem conhecimento e sabedoria é apenas uma ideia. Pode ser manipulada e
transformada segundo intentos, no entanto aquele que conhece a verdade e
caminha na sua luz, esse sim desvenda todos os segredos.
-
Quem és tu? Para além de alguém que conhece várias gerações humanas e o demais
que não me recordo.
- A
humanidade só me conhece no fim da sua jornada, alguns tendem a chamar-me de
morte. Eu considero uma palavra forte e negativa. Não sou eu que tiro a vida,
apenas aguardo por todos quando a mesma chega ao fim, sou um guia, num novo
mundo, numa nova vida.
Não
vais encontrar ninguém à tua procura porque já ninguém te espera encontrar com
vida. Como aguardei muitos, um dia vim por ti também, uma alma destroçada,
cheia de remorsos.
-
Porque motivo não me recordo de nada?
-
Quanto vieste ter comigo pediste que te apagasse o passado, assim o fiz e mesmo
sem o registo de uma vida, a tua alma quis regressar.
-
Se eu recuperar a memória poderei saber o que busco?
-
Poderás arrepender-te também de buscar seja o que for.
- É
o único caminho!
Aquela
criança suspirou durante breves momentos, mostrando o primeiro sinal de incerteza
sobre o que iria fazer…
-
Muito bem, fecha os teus olhos!
Como
uma luz que clareou a sua mente a memória retornou, e ela caiu de joelhos em
pranto e desespero perante o terror da verdade…
Continua…
(Joel Flor)
(Joel Flor)
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