
O
seu corpo permanecia imóvel, o único sinal de vida que expressava eram os olhos
que viajam pelos cantos da casa, pelas recordações em cima das prateleiras, por
entre livros, móveis, fotografias de rostos que permaneciam apenas por entre o
perfume amargo da saudade. O silêncio trazia de volta as recordações e como ela
detestava aquele silêncio. Poderia um vendedor de TV por cabo entrar de
rompante mesmo que o velho televisor avariado há oito anos encurtasse a sua
visita. Poderia um parente distante aparecer junto à porta com uma mala entre
os dedos. Podia na pior das hipóteses cair uma tempestade, talvez o som da chuva
e do trovão a consolassem com a sua melodia, mas até a brisa da tarde
descansava no seu recanto.
Esse
era o problema do silêncio, quando ele absorve a nossa vida levando tudo e
todos, o mundo e a natureza acabam também por se esquecer de nós, até que as
nossas memórias morram connosco e a nossa história se desfaça entre as cinzas
como se nunca tivesse existido. “Cinzas ao vento”, este era um dos inúmeros pensamentos
que a perturbavam.
Na
história da sua vida, os três filhos teriam partido para a guerra e não
voltaram, o seu marido teria adormecido para sempre na sua cama, num sono
profundo e pacífico. Um homem de consciência tranquila sobre o legado que teria
dado aos filhos e da história que teria deixado para trás.
Parte
dela teria morrido com eles e a pessoa que ela foi em tempos era apenas uma
sombra. A casa que em tempos era inundada pelos sorrisos das crianças que
cresciam aos seus pés. Dos churrascos de domingo dos amigos que despareceram
com o tempo. Essa melodia graciosa e acolhedora, o som da vida estava presente
naqueles retratos, ela permanecia como a última nota de uma música. Como a
última frase de um romance com um final óbvio.
O
som de um veículo surge no horizonte, o seu vulto movimenta-se por entre as
persianas de madeira contornando a luz do por do sol quase extinto. O silêncio
è rompido pelo som das rodas que se sustém junto à sua porta, mantendo-se
apenas o som de um motor que trabalhava como um relógio.
Ela
teria tido aquele mesmo sonho vezes sem conta, que um veículo trouxesse as suas
crianças de volta para os seus braços, até que o sonho morreu com o fim da
esperança.
Levantou-se
dolorosamente sobre os seus ossos cansados apoiando-se sobre as suas pernas.
Escutou vozes do lado de fora. O ronco do motor se afastou lentamente à medida
que um homem batia à porta. Aproximou-se exausta tentando reconhecer os traços
que se desenhavam por entre as cortinas da porta. Sem pensamentos prévios foi
recebida pelo sorriso do seu filho mais novo, estava envelhecido, teria permanecido
durante dez anos como prisioneiro de guerra. Acolheu-a nos seus braços durante
alguns minutos até que entraram os dois e conversaram durante horas.
Era
tempo de escrever uma nova história, de seguir um novo percurso. Existem coisas
na nossa vida que parecem incontornáveis, fins que parecem previsíveis e sonhos
que parecem maldições, mas num universo em constante movimento a única certeza
que é certa, é não termos certeza de nada. Que devemos acreditar até ao último
segundo. Que devemos manter sempre acesa, a luz na escuridão.
(Joel
Flor)
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