O frio se
instaurava pelas ruas estreitas de Lisboa como um intruso sorrateiro procurando
consumir a ausência do sol, agora entregue ao seu repouso. Sofia regressava com
duas amigas da noite de sexta-feira, alegres e donas do mundo. Tinham uma vida perfeita,
Universidade, dinheiro dos pais, carros importados e pois claro, as
sextas-feiras eram sagradas. A Carla murmurava-lhe algumas parvoíces ao ouvido
quando a mesma é acometida de uma ânsia no estômago que estraga a diversão momentânea.
Mais tarde entrando sorrateiramente pelas traseiras da vivenda dos pais em
Cascais, joga-se com as suas roupas embebidas num o odor fétido de álcool e
tabaco e desmaia num sono profundo.
Poucas horas
mais tarde o sol se erguia na sua magnitude e força penetrando sobre as enormes
portas de vidro, implacável sobre a sua fúria inquisidora, torturando o efeito
de ressaca que despontava com uma terrível dor de cabeça. Por volta das oito
horas da manhã a empregada Denise que teria sido ama pessoal de Sofia na sua
infância mantendo-se depois ao serviço da família, entra no seu quarto,
despindo-a e ajudando-a a chegar a um chuveiro. Alguns minutos mais tarde ela
procurava novamente a Denise que a aguardava com o pequeno-almoço pronto na
mesa, observando-a com, um ar preocupante.
- Não sei o que
seria de mim sem ti Denise, estou de rastos. - Comenta Sofia sobre uma voz
rouca.
Denise engole em seco antes de se
pronunciar.
- Já tenho o
resultado dos exames Sofia... deu positivo.
A jovem sustem o copo de leite
que tinha entre os dedos suspenso e imóvel juntamente com o seu
corpo e rosto pálido, lentamente procura uma cadeira cambaleando entre as
pernas a uma altura em que gotas de leite salpicavam o chão espelhado.
- Falaste alguma coisa aos meus
pais?
- Não, mas esperava que tomasses
esse passo o mais breve possível.
- Acho que não conheces bem os meus
pais Denise. Isto seria o fim, na minha família nunca houve uma mãe solteira
aos dezoito anos. Tem de haver outra solução!
- Que solução Sofia, daqui uns
meses vai se notar!
- Não é isso que eu estou a dizer.
Denise observa-a não querendo
acreditar no que ela queria dizer. Aquela não era a criança que teria ajudado a
criar como se fosse sua filha, talvez mais que os próprios pais, indiferentes
aos seus erros.
- Eu não posso decidir por ti, mas
para uma decisão dessas podes esquecer a minha ajuda. Nesse tema considera-te
só porque jamais irei te apoiar.
Sofia
lançava-lhe um olhar furioso, sentia-se desesperada e desamparada. O seu mundo
perfeito teria desabado sobre os seus pés como um castelo de areia e ela que
sempre tinha tido tudo e todos agora estava só. O pai da criança que se formava
no seu ventre era um desconhecido, um jovem alto de traços esbeltos que teria
conhecido numa discoteca, no entanto não recordava o seu e nome e o seu rosto
desfigurava-se aos poucos na memória.
Meditando mais
tarde a sós sobre a situação que se deparava, tomou um impulso de coragem ou
talvez covardia e procurou uma clínica ilegal especializada em abortos, longe
de casa e discreta, justificar o alto valor que iria sair da sua conta poupança
era de longe o pior dos problemas, os pais eram completamente ausentes da sua
vida, um casal de estranhos que partilhava a mesma casa e comunicava de um
modo geral por bilhetes colados na porta de um frigorífico. Naquela tarde não
foi diferente, um bilhete escrito, "Vou passar o fim-de-semana com a
Carla!" resolvia o problema sem grandes questões.
Algumas horas mais tarde chegava de
táxi a um condomínio fechado com umas instalações decentes que transmitiram um
pouco de tranquilidade e confiança no trabalho que ia ser feito. Um assistente
acompanhou-a à sala de operações onde iria decorrer a cirurgia. Tudo decorria
rapidamente, sem dar tempo que pensar no que ia ao certo fazer. Tinha tomado um
impulso procurando uma solução e a solução tinha ganho cor e forma em minutos.
Limitava-se a pensar que após umas horas de repouso tudo voltaria a ser como
antes e rapidamente esqueceria aquele dia sombrio.
Um médico
sorridente e simpático entrou na sala, falava como um vendedor de seguros que
tentava quebrar o desconforto do momento com piadas e comentários engraçados
gerados a vapor. Apesar do à vontade em que esbanjava numa intimidade
excessiva, por momento algum se identificou.
- Vai correr tudo bem, vou te
injectar o soro, vais adormecer rapidamente e quando acordares já estará tudo
feito, vais ter de ficar só um dia de repouso e pronto estás livre para ires à
tua vida.
Sofia assentiu com a cabeça sem ter
certeza de nada, dentro de si se encontrava uma pessoa aterrorizada numa guerra
contra a sua própria consciência. Nunca teria tomado uma decisão tão adulta até
aquele dia, e o facto de estar só desabava a sua fraca estrutura psicológica.
Os milhões de pensamentos que cruzavam a sua mente afundaram-se num lago momentâneo
à medida que o líquido branco do soro penetrava as suas veias sem um prévio
convite, perdeu imediatamente os sentidos desmaiando num sono profundo e
sereno.
Acorda
subitamente deitada sobre um campo pintado de flores de todas as cores sobre um
sol acolhedor e confortante, a bata branca de paciente teria sido trocada por
um belo vestido branco de seda comprido até aos pés que se movimentava aos
contornos do vento que suspirava como o ressonar de uma criança, os pássaros
cantavam diferentes tipos de canções, melodias doces que transmitiam paz numa
sintonia divina. Por entre as relvas algo se mexia sem que pudesse ser visto,
não lhe provocava receio, apenas curiosidade por entre a que já se havia
instaurado naquele cenário deslumbrante, poderoso e tão longe do toque humano.
A medida que
aquele remoinho sobre a vegetação se aproximava de entre as relvas e flores
saltou uma criança, um rapazinho de cabelos loiros e olhos esverdeados, tinha
um sorriso meigo olhando-a de relance, num gesto de reconhecimento e
provocação, saiu correndo novamente por entre as flores mergulhando naquele
arco-íris terrestre e ao mesmo tempo divino perdendo-se entre sorrisos que se
dispersavam naquela vastidão de todas as cores da natureza.
Foi então que a imagem de um homem
se formou por entre flores que subitamente se envolviam num remoinho de luzes crescendo
com delicadeza ganhando forma e vida. Um ser de aparência humana emergiu
daquele tornado de cores pronunciando-se com uma voz que foi soando humana a cada
palavra que proferia, à medida que se formava.
- Olá Sofia, que bom te ver aqui,
esperei muito por este encontro. – Comenta aquele ser.
- Quem és tu? - Pergunta ela
atónita.
- Hoje essa será de longe a mais
importante das respostas que deves ouvir. O mundo se revelou a ti num segundo
mostrando-te o terror e o medo que impõe quando te tira algo com o qual não
julgamos ser capazes de viver. Mas a determinada altura todos os homens acham
que chegaram ao limite daquilo que julgariam suportar, no entanto sempre nasce
um novo dia que prova que estão errados. Sofrer é natural, é humano, é quase
necessário no percurso de cada um. Agora as escolhas que tomamos essas sim,
temos de ter cuidado com elas, pois uma escolha pode mudar o mundo, uma escolha
persegue-nos até ao fim.
Um pouco confusa
com toda aquela informação exposta de um modo intenso e claro, ela foge ao
assunto com aquilo que lhe ocupava a mente.
- Aquela criança? Isto tudo... è
irreal!
- Os sonhos são irreais, depende do
ponto a que estás disposta a ir para torná-los reais.
- Um momento pode ser real, e
irreal no segundo seguinte. Tudo depende das escolhas que tomamos, são elas que
ditam as regras do que é e não é possível.
- Ele é o meu filho? - Questiona
ela trémula e incrédula!
- Sim... poderia ter sido! Mas essa
escolha, tu já tomaste. Não tens como voltar atrás.
- Porquê que isto está a me
acontecer?
- Porque até ao dia de hoje foste
uma pessoa desprezível, nunca pensaste em alguém para além de ti, do teu futuro
dos sonhos superficiais que se desvanecem em pó, das amigas que te acompanham,
mas temes revelar os teus tenebrosos segredos. Da imagem exterior que valorizas
tanto. Tudo isso o tempo destrói.
- Isto è um sonho, eu não acredito
nessas coisas.
- Como muitas outras pessoas nunca
tiveste a necessidade de acreditar, sempre foste atrás das soluções práticas.
- Mas se eu já tomei a minha
escolha, porque é que estamos aqui?
- Porque a partir do momento em que
olhaste aquela criança nos olhos, sentiste a dimensão do amor de uma mãe, como
por um segundo, por isso é que ela não saí da tua cabeça, pela tua capacidade
de amar já te transformaste numa nova pessoa.
- Fala-me mais dessa criança. Como é que sabes que ele existe se a escolha já foi tomada?
- Porque eu não tomo escolhas, eu
conheço o passado, o futuro e o presente, tudo me è revelado por isso não
preciso escolher.
A tua próxima pergunta é: O que
será que aconteceria se eu escolhesse ter esse filho. Irias sofrer, os teus
pais te rejeitariam, irias morar num bairro degradado, sem condições mas terias
a maior riqueza desse mundo.
- Deixa-me vê-lo!
Aquele ser aproximou-se dela
colocou-lhe as mãos sobre a testa e subitamente o mundo se transfigurou, num
segundo viu o filho crescer, ir para a escola, começar a namorar, entrar na
universidade, pedir alguém em casamento e ser um homem exemplar, amado…
- Isto é o que muitas pessoas podem
ser, no entanto ele seria muito mais do que isso, se tivesse tido a
oportunidade de viver.
- Como assim?
- Daqui 30 anos irá se propagar um
vírus mortal chamado XV, esse vírus vai dizimar 6 mil milhões de pessoas, até
que por fim eliminará por completo a raça humana. Dentro de 40 anos não haverá
um ser vivo na Terra.
Sofia escutava trémula e incrédula
toda aquela informação que lhe era dada. Sentindo-se cair sobre o chão sem
forças.
- O teu filho se existisse seria o
Doutor Leonel Silvestre, ele estava destinado a encontrar a cura, mas através
de uma escolha, o destino do mundo mudou?
- Eu sou responsável pelo fim da
humanidade?
- O fim da humanidade tem tanto de
previsível como de inevitável. Tu és responsável pelas tuas escolhas.
- Estou perante o meu julgamento?
- Não, estás perante uma segunda
oportunidade.
- Eu farei tudo para concertar os
meus erros, prometo! Não me deixes terminar assim, eu vou viver em função dessa
criança, se for preciso morrerei em função dessa criança também.
- Então, assim seja!
Sofia despertou subitamente deitada
sobre aquela máquina observando o médico!
- A cirurgia…
- Calma, vai correr tudo bem, vou
te injectar o soro, vais adormecer rapidamente e quando acordares já estará
tudo feito, vais ter de ficar só um dia de repouso e pronto estás livre para
ires à tua vida.
Quando
o médico descia com aquela injecção Sofia agarra-o pelo braço empurrando-o
violentamente.
- Afasta-te de mim.
Olhando-a surpreendido o médico
observa-a afastando-se e saindo pela porta principal.
Dez anos depois…
Sofia residia num T0 com o seu
filho Leonel, trabalhava de dia num supermercado e de noite num bar, de
madrugada chega a casa deparando-se com a luz cortada por falta de pagamento,
procurando o seu filho o mesmo encontrava-se na varando com duas velas acesas
uma de cada lado.
- Não estás dormir ainda seu
maroto?
- Mãe, porquê que temos de passar
por tanta necessidade, enquanto outras crianças tem tudo.
Sofia envelhecida, vinte quilos
mais gorda observa o seu filho sentindo as lágrimas caírem sobre o seu rosto
numa sensação de fracasso para com ele. O Leonel sorri com o mesmo sorriso que
teria contemplado pela primeira vez naquele campo de flores e luzes.
- Não fiques triste mãe, olha para
aquele céu estrelado, faz de conta que é o nosso tesouro.
- Tu és o meu tesouro, a minha
riqueza, no meu coração és maior que o céu e a terra, e enquanto te tiver a ti…
terei tudo.
Joel
Flor
Conto instigante, que nos leva a consciencia sobre nossos atos. Vale à pena arriscar uma vida tendo tudo nas mãos por um sentimento de dimensões tão maiores, como a escolha de ser mãe? sempre podemos escolher, mas são as escolhas que definem o futuro, como no caso dessa história, quem sabe até da humanidade. O futuro está nas nossas mãos, querendo ou não. Sabendo ou não. Ótima escrita, boas ideias. parabéns
ResponderExcluirA ficção por vezes é um espelho da realidade. A mensagem que a história traz é o poder e o impacto das nossas escolhas perante a futilidade dos nossos sonhos provisórios que nos impedem de evoluir, até que o nosso entendimento alcance o verdadeiro significado da vida.
ResponderExcluirGrato pelo comentário, volte sempre!
Muito bom Joel! Esta história é uma novidade da tua parte... :P Excelente tema!
ResponderExcluirMuito bom Joel! Esta história é uma novidade da tua parte... :P Excelente tema!
ResponderExcluirGostaste tanto que até repetes o comentário, lol. Obrigado Mirela!
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