
Geralmente
os confrontos com a sua mãe eram conversas curtas, mas aquela era a festa da
sua vida, o rapaz de quem gostava iria lá estar, ela tinha a certeza de que se
não fosse, o perderia para sempre. Acreditava que o seu destino estava traçado,
e a escolha dos seus passos independentemente da idade que tivesse eram seus
para serem escolhidos quando bem entendesse, ninguém tinha o direito de lhe
roubar os sonhos.
Teria
garantido à sua amiga Jessica que estaria à porta da sua casa as 21 horas
daquele dia, mesmo que o céu desabasse sobre a sua cabeça, e aquela promessa
não iria quebrar por nada deste mundo.
O sol
desaparecendo lentamente por cima do telhado dos seus vizinhos apenas aumentava
o seu nervosismo, penteou os seus longos cabelos loiros, vestiu um vestido
vermelho e lentamente pintava os seus lábios com um batom da mesma cor. Aquele
gesto adulto ainda lhe era estranho, lentamente ia conhecendo uma nova figura
diante do espelho, a ideia de parecer cinco anos mais velha agradava-a bastante.
A porta abriu-se de rompante, a mãe observava-a de semblante fechado, apesar do
incómodo ela tentou permanecer indiferente…
- É
assim que vai ser então?
-
Não sou mais uma criança, todas as minhas amigas saem quando querem e não dão
satisfações a ninguém. Acho que estas a viver no século errado. Não vou mais
desperdiçar esta fase da minha vida por causa das tuas ideias.
-
Muito bem, no entanto a algo que deves saber sobre essa vida que julgas
conhecer tão bem. Decisões de peso têm as suas consequências, tiveste toda a
tua vida quem as assumisse por ti. Se saíres por aquela porta hoje, não voltes
a entrar, nunca mais.
Alice
estremeceu perante a dureza das palavras que ouvia, mas manteve-se fiel à sua promessa,
assim que a sua mãe saiu do quarto tentou focar-se apenas na festa, o demais
haveria de decidir mais tarde quando fosse oportuno.
Andava
de um lado para o outro dentro daquelas quatro paredes, os minutos passavam
lentamente, a noite teria consumido a luz do sol por detrás daquela janela do
seu quarto, não suportava mais aquele nervosismo e optou por sair uns minutos
mais cedo. A sua mãe estava no seu quarto, a televisão da sala transmitia um
recital infantil no entanto não tinha telespectadores à exceção do gato Matias
que bocejava entediado, deitado no sofá. Cruzou aquele corredor esperando ouvir
um grito a qualquer momento mas tal não aconteceu. Assim que colocou os pés
fora de casa e a porta se fechou por trás. Os nervos acalmaram, suspirou fundo
e seguiu por aquela rua silenciosa.
Um
grupo de bêbados passou por ela com alguns gracejos, era uma novidade ser
mulher, ignorou-os e acelerou o passo, a casa de Jéssica ficava a pouco mais do
que quinhentos metros, a rua era agora mais isolada, teria passado por ela
durante anos à luz do dia, no entanto naquela noite parecia outro lugar. Ouviu
um ruído estranho, quando se preparava para voltar um braço forte prendeu-a de
costas enquanto a outra mão tapava-lhe a boca, tentou-se debater inutilmente
mas perdia os sentidos lentamente, um lenço na sua boca obrigava-a a respirar
algo que a faria adormecer. Sentiu um pavor enorme, perdeu as forças e
mergulhou inconsciente nos braços daquele estranho.
Algumas
horas mais tarde despertou na traseira de uma carrinha de caixa, uma pequena
janela iluminava aquele compartimento, com a luz do sol que ia se erguendo no
horizonte. Do outro lado da estrada um carro da polícia cruzou com a carrinha
mas seguiu o seu caminho. Sentiu vontade de gritar por auxílio mas não tinha
forças, estava apavorada, e uma tentativa infrutífera poderia provocar a sua
morte, então encolheu-se sobre uma coberta, tremendo e chorando, a única pessoa
em quem conseguia pensar era na sua mãe.
A
polícia iniciou as buscas na manhã seguinte quando a mãe de Alice ligou à
Jéssica e a mesma respondeu que a Alice nunca teria aparecido. Era uma cidade
pequena, o acontecimento gerou um impacto profundo, ao fim de uma semana as
buscas não produziram qualquer resultado ou pista. A Alice poderia estar em
qualquer lugar agora.
Estavam
em março de 2002, foi finalmente em novembro do mesmo ano que encontraram a
cena do crime, uma cave funda por de trás de uma quinta, um passante teria
visto um homem descarregar um corpo embrulhado numa manta. No dia anterior uma
jovem de dezanove anos teria sido dada como desaparecida. Pela altura que as
autoridades chegaram ao local foi tarde demais para lhe salvar a vida. Sandro
Valêncio de quarenta e dois anos de idade foi detido e julgado pelo homicídio qualificado
de vinte e duas mulheres, apenas o corpo da última mulher foi encontrado, no
entanto através de análises de ADN conseguiram identificar a passagem de Alice
por aquele lugar. Confessando o assassino também a sua morte.
A
parte final da história era redigida pela criança, tendo Alice conhecimento apenas
da forma brutal como teria sido assassinada. Sentou-se lentamente sobre a
calçada, por mais frustrante que fosse, as respostas não traziam soluções no
seu caso.
-
Chamo-me Alice!
-
Sim, esse foi o teu nome um dia, e esta a tua história.
-
Quantos anos passaram?
-
Passaram seis anos, por isso é que não conseguiram ajudar-te na esquadra. O
processo foi arquivado quando o assassino confessou. Ninguém anda á tua procura
há muito tempo.
-
Não entendo, o que devo eu fazer?
-
No coração dos homens todos os caminhos são evidentes, quando são corrompidos
pela natureza humana, começam logo a surtir as dúvidas. Tu sabes o que tens de
fazer, segue o caminho que te trouxe de volta este mundo.
-
Mas…
A
pergunta sucumbiu perante a luz que abraçava o seu entendimento, a criança
desapareceu deixando-a novamente. Ela sabia que o tempo era limitado, que o
privilégio que lhe tinham concedido teria de servir o seu propósito, e naquele
momento ela sabia exatamente o que tinha de fazer. Teria de se reconciliar com
a sua mãe, para que as duas seguissem os diferentes caminhos em paz.
Caminhou
durante horas por aquela estrada longa, vendo o sol iluminar o seu caminho
lentamente, começou a reconhecer bairros, lojas, e pouco a pouco algumas
pessoas que não notavam a sua presença. Sentia-se como um fantasma vagueando o
seu universo perdido, passou pela porta da Jéssica, teria agora vinte e três
anos, talvez ainda morasse com os pais, quem sabe teria encontrado a sua cara-metade
naquela noite e estivesse agora casada, a vida segue milhões de destinos quando
temos imaginação para nos perdermos divagando diversos sentidos.
Ao
fundo da rua a porta da sua casa desenhava todas as recordações da sua
infância. Aproximou-se lentamente, a cidade dormia, eram seis horas da manhã,
susteve o passo diante da sua porta. Procurou o vaso onde a sua mãe sempre
escondia uma chave suplente e notou que os velhos hábitos mantinham-se vivos.
Abriu lentamente a porta e entrou, o velho gato Matias que não gostava de
estranhos reconheceu-a de imediata esfregando-se nos seus pés, acariciou-o e
seguiu pelo corredor. A porta do quarto estava entreaberta, antes que avançasse
denotou vários frascos de comprimidos, antidepressivos, comprimidos para dormir.
O cenário evidente revelava que os últimos anos não teriam sido fáceis.
Abriu
lentamente a porta deixando um pequeno rastro de luz iluminar a escuridão do
interior. A sua mãe estava deitada por debaixo de um lençol, dormia
profundamente, todos os cantos da casa mostravam falta de asseio, percebeu que
as limpezas não eram tão frequentes como antigamente. Certamente continuava
solteira desde o falecimento do seu pai e os cuidados pessoais teriam perdido a
sua prioridade, como mulher e como ser humano.
Sentou-se
lentamente sobre a cama com medo de acordar, apesar do efeito dos comprimidos
ser forte. Acariciou-lhe lentamente o cabelo que começava a ficar grisalho,
talvez já fosse antes no entanto agora não se dava ao trabalho de o disfarçar.
A
voz daquele ser que a acompanhava ocasionalmente sobre a forma humana,
pronunciou-se ao seu ouvido…
-
Fala o que tens de falar, ela vai ouvir e tudo produzirá o devido efeito.
Alice
comoveu-se antes que as palavras saíssem, as lágrimas caiam lentamente pelo seu
rosto…
-
Mãe, eu sei que me consegues ouvir, estou aqui porque quero que saibas que
lamento muito tudo o que aconteceu. Lamento ter sido tão egoísta, lamento não
te ter apoiado quando o pai partiu, lamento não ter-te abraçado todas as vezes
que te vi chorar. Perdoa-me por ter-te deixado naquele dia, a vida ensina-nos
através dos nossos erros, mas nem todos tem uma segunda oportunidade para se
redimirem. Tu tens a oportunidade de uma nova vida, algo que eu já não tenho.
Não desperdices a vida, sobrevivendo presa ao passado. Agarra os dias vindouros
com as duas mãos. Luta pela tua felicidade, por mim e por ti, para que eu possa
partir em paz, sabendo que haverá apenas saudade e não remorsos. Perdoa-me por
tudo, para que eu possa também, perdoar-me a mim mesma.
Abraçou
aquele corpo quente, mesmo dormindo as lágrimas caiam do rosto daquela mulher.
Alice sentiu-se leve, a sua missão no mundo estaria cumprida, era tempo de
regressar. Levantou-se lentamente e seguiu o seu caminho. Passando por um
espelho observou-se de relance por um momento, não se tinha apercebido até
aquele momento que tinha envelhecido como se tivesse a idade que teria viva.
Lá
fora um homem de boa aparência observava-a, tranquilo como se a conhecesse, e
logo ela entendeu que a morte a aguardava numa nova forma. Aproximou-se dele…
-
Chegou a hora de regressarmos.
-
Então a minha missão está cumprida?
-
Sim. – O homem observava-a sabendo que a pergunta transmitia alguma falta de
convicção, estava em paz, mas continuava triste.
- O
assassino é o único homem que sabe que morri, mesmo que tenha confessado, o meu
corpo nunca foi encontrado.
-
Sabia! Ele morreu há dois anos atrás, assassinado numa prisão. Até os presos
tem mães, filhas e irmãs. Um homem como aquele não seria bem aceite em lado
nenhum. Foi encontrado morto na sua cela. A justiça sempre chega a todos.
-
Então ninguém vivo pode afirmar que realmente eu fui assassinada, amostras de
sangue não provam nada.
-
Onde é que queres chegar?
-
Eu queria uma segunda oportunidade!
-
Já a tiveste!
- A
minha mãe precisa de mim.
-
Todos precisam de alguém, mas o mundo não é perfeito.
-
Tu observas a humanidade desde o princípio dos tempos. Tem um pouco de fé em
nós, eu sei que podes fazer algo por nós, podes dar-nos algo em que acreditar.
-
Isso ultrapassa-me, sou apenas um guia.
-
Por favor!
- Consegues
ouvir este som, esta melodia? É o som do silêncio, do fim. Eu chamo-lhe “A
Melodia do silêncio”, é como um consolo divino que sentimos quando deixamos este
mundo em paz, o som não significa o fim, significa que está livre, perdes o
mundo mas ganhas o universo. O som está a chamar por ti.
A
Alice aproximou-se do homem segurando-lhe na mão, colocou sobre o seu peito,
junto ao seu coração. Consegues ouvir este som? O seu ritmo, que pulsa e
estremece o nosso ser? Este é “O som da vida”. Eu escolho a vida, deixa-me
viver!
O
homem observou-a durante alguns momentos, lentamente esboçou o seu primeiro
sorriso durante aquele percurso e partiu. A Alice manteve-se atónita durante
alguns momentos, contemplou aquele mundo ao seu redor, como se pela primeira
vez ele lhe pertencesse. Entrou d1entro de casa novamente, dirigiu-se ao seu
velho quarto. Permanecia intacto. O frasco de batom continuava aberto em cima
da sua mesa. A janela do seu quarto pintava o mesmo quadro que conhecera toda a
sua vida. Deitou-se lentamente sobre a sua cama encolhendo-se sobre os
cobertores, perdida entre uma exaustão que teria sido combatida até momentos
atrás pela adrenalina. Cedeu e adormeceu num sono profundo.
Na
primeira página de todos os jornais nacionais uma notícia pulsava em destaque: “Jovem
desaparecida aparece ao fim de seis anos.” O mundo alegrava-se na felicidade de
uma mãe, por momentos esquecia-se dos seus problemas, da sua vaidade, da sua
ignorância, da sua intolerância, do seu egoísmo. Por momentos recordava o que
era ser humano e viver cada dia em virtude de uma causa nobre, de um verdadeiro
propósito.
Fim
(Joel Flor)