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sábado, 3 de novembro de 2012

O som da vida - Parte II


             Alice estava um tanto inquieta no final daquela tarde de Outono, teria discutido com a sua mãe a respeito de uma festa que pretendia ir durante todos os dias daquela semana. Lutava irremediavelmente contra a sua vontade que a proibia de sair de casa, “Tens dezasseis anos, não vais a lado nenhum!” Aquelas palavras da sua mãe fluíam como um eco imortal na sua cabeça, como uma cassete que virara vezes e vezes espezinhando a sua consciência.
Geralmente os confrontos com a sua mãe eram conversas curtas, mas aquela era a festa da sua vida, o rapaz de quem gostava iria lá estar, ela tinha a certeza de que se não fosse, o perderia para sempre. Acreditava que o seu destino estava traçado, e a escolha dos seus passos independentemente da idade que tivesse eram seus para serem escolhidos quando bem entendesse, ninguém tinha o direito de lhe roubar os sonhos.
Teria garantido à sua amiga Jessica que estaria à porta da sua casa as 21 horas daquele dia, mesmo que o céu desabasse sobre a sua cabeça, e aquela promessa não iria quebrar por nada deste mundo.
O sol desaparecendo lentamente por cima do telhado dos seus vizinhos apenas aumentava o seu nervosismo, penteou os seus longos cabelos loiros, vestiu um vestido vermelho e lentamente pintava os seus lábios com um batom da mesma cor. Aquele gesto adulto ainda lhe era estranho, lentamente ia conhecendo uma nova figura diante do espelho, a ideia de parecer cinco anos mais velha agradava-a bastante. A porta abriu-se de rompante, a mãe observava-a de semblante fechado, apesar do incómodo ela tentou permanecer indiferente…
- É assim que vai ser então?
- Não sou mais uma criança, todas as minhas amigas saem quando querem e não dão satisfações a ninguém. Acho que estas a viver no século errado. Não vou mais desperdiçar esta fase da minha vida por causa das tuas ideias.
- Muito bem, no entanto a algo que deves saber sobre essa vida que julgas conhecer tão bem. Decisões de peso têm as suas consequências, tiveste toda a tua vida quem as assumisse por ti. Se saíres por aquela porta hoje, não voltes a entrar, nunca mais.
Alice estremeceu perante a dureza das palavras que ouvia, mas manteve-se fiel à sua promessa, assim que a sua mãe saiu do quarto tentou focar-se apenas na festa, o demais haveria de decidir mais tarde quando fosse oportuno.
Andava de um lado para o outro dentro daquelas quatro paredes, os minutos passavam lentamente, a noite teria consumido a luz do sol por detrás daquela janela do seu quarto, não suportava mais aquele nervosismo e optou por sair uns minutos mais cedo. A sua mãe estava no seu quarto, a televisão da sala transmitia um recital infantil no entanto não tinha telespectadores à exceção do gato Matias que bocejava entediado, deitado no sofá. Cruzou aquele corredor esperando ouvir um grito a qualquer momento mas tal não aconteceu. Assim que colocou os pés fora de casa e a porta se fechou por trás. Os nervos acalmaram, suspirou fundo e seguiu por aquela rua silenciosa.
Um grupo de bêbados passou por ela com alguns gracejos, era uma novidade ser mulher, ignorou-os e acelerou o passo, a casa de Jéssica ficava a pouco mais do que quinhentos metros, a rua era agora mais isolada, teria passado por ela durante anos à luz do dia, no entanto naquela noite parecia outro lugar. Ouviu um ruído estranho, quando se preparava para voltar um braço forte prendeu-a de costas enquanto a outra mão tapava-lhe a boca, tentou-se debater inutilmente mas perdia os sentidos lentamente, um lenço na sua boca obrigava-a a respirar algo que a faria adormecer. Sentiu um pavor enorme, perdeu as forças e mergulhou inconsciente nos braços daquele estranho.
Algumas horas mais tarde despertou na traseira de uma carrinha de caixa, uma pequena janela iluminava aquele compartimento, com a luz do sol que ia se erguendo no horizonte. Do outro lado da estrada um carro da polícia cruzou com a carrinha mas seguiu o seu caminho. Sentiu vontade de gritar por auxílio mas não tinha forças, estava apavorada, e uma tentativa infrutífera poderia provocar a sua morte, então encolheu-se sobre uma coberta, tremendo e chorando, a única pessoa em quem conseguia pensar era na sua mãe. 

A polícia iniciou as buscas na manhã seguinte quando a mãe de Alice ligou à Jéssica e a mesma respondeu que a Alice nunca teria aparecido. Era uma cidade pequena, o acontecimento gerou um impacto profundo, ao fim de uma semana as buscas não produziram qualquer resultado ou pista. A Alice poderia estar em qualquer lugar agora.
Estavam em março de 2002, foi finalmente em novembro do mesmo ano que encontraram a cena do crime, uma cave funda por de trás de uma quinta, um passante teria visto um homem descarregar um corpo embrulhado numa manta. No dia anterior uma jovem de dezanove anos teria sido dada como desaparecida. Pela altura que as autoridades chegaram ao local foi tarde demais para lhe salvar a vida. Sandro Valêncio de quarenta e dois anos de idade foi detido e julgado pelo homicídio qualificado de vinte e duas mulheres, apenas o corpo da última mulher foi encontrado, no entanto através de análises de ADN conseguiram identificar a passagem de Alice por aquele lugar. Confessando o assassino também a sua morte.
 

A parte final da história era redigida pela criança, tendo Alice conhecimento apenas da forma brutal como teria sido assassinada. Sentou-se lentamente sobre a calçada, por mais frustrante que fosse, as respostas não traziam soluções no seu caso.
- Chamo-me Alice!
- Sim, esse foi o teu nome um dia, e esta a tua história.
- Quantos anos passaram?
- Passaram seis anos, por isso é que não conseguiram ajudar-te na esquadra. O processo foi arquivado quando o assassino confessou. Ninguém anda á tua procura há muito tempo.
- Não entendo, o que devo eu fazer?
- No coração dos homens todos os caminhos são evidentes, quando são corrompidos pela natureza humana, começam logo a surtir as dúvidas. Tu sabes o que tens de fazer, segue o caminho que te trouxe de volta este mundo.
- Mas…
A pergunta sucumbiu perante a luz que abraçava o seu entendimento, a criança desapareceu deixando-a novamente. Ela sabia que o tempo era limitado, que o privilégio que lhe tinham concedido teria de servir o seu propósito, e naquele momento ela sabia exatamente o que tinha de fazer. Teria de se reconciliar com a sua mãe, para que as duas seguissem os diferentes caminhos em paz.
Caminhou durante horas por aquela estrada longa, vendo o sol iluminar o seu caminho lentamente, começou a reconhecer bairros, lojas, e pouco a pouco algumas pessoas que não notavam a sua presença. Sentia-se como um fantasma vagueando o seu universo perdido, passou pela porta da Jéssica, teria agora vinte e três anos, talvez ainda morasse com os pais, quem sabe teria encontrado a sua cara-metade naquela noite e estivesse agora casada, a vida segue milhões de destinos quando temos imaginação para nos perdermos divagando diversos sentidos.
Ao fundo da rua a porta da sua casa desenhava todas as recordações da sua infância. Aproximou-se lentamente, a cidade dormia, eram seis horas da manhã, susteve o passo diante da sua porta. Procurou o vaso onde a sua mãe sempre escondia uma chave suplente e notou que os velhos hábitos mantinham-se vivos. Abriu lentamente a porta e entrou, o velho gato Matias que não gostava de estranhos reconheceu-a de imediata esfregando-se nos seus pés, acariciou-o e seguiu pelo corredor. A porta do quarto estava entreaberta, antes que avançasse denotou vários frascos de comprimidos, antidepressivos, comprimidos para dormir. O cenário evidente revelava que os últimos anos não teriam sido fáceis.
Abriu lentamente a porta deixando um pequeno rastro de luz iluminar a escuridão do interior. A sua mãe estava deitada por debaixo de um lençol, dormia profundamente, todos os cantos da casa mostravam falta de asseio, percebeu que as limpezas não eram tão frequentes como antigamente. Certamente continuava solteira desde o falecimento do seu pai e os cuidados pessoais teriam perdido a sua prioridade, como mulher e como ser humano.
Sentou-se lentamente sobre a cama com medo de acordar, apesar do efeito dos comprimidos ser forte. Acariciou-lhe lentamente o cabelo que começava a ficar grisalho, talvez já fosse antes no entanto agora não se dava ao trabalho de o disfarçar.
A voz daquele ser que a acompanhava ocasionalmente sobre a forma humana, pronunciou-se ao seu ouvido…
- Fala o que tens de falar, ela vai ouvir e tudo produzirá o devido efeito.
Alice comoveu-se antes que as palavras saíssem, as lágrimas caiam lentamente pelo seu rosto…
- Mãe, eu sei que me consegues ouvir, estou aqui porque quero que saibas que lamento muito tudo o que aconteceu. Lamento ter sido tão egoísta, lamento não te ter apoiado quando o pai partiu, lamento não ter-te abraçado todas as vezes que te vi chorar. Perdoa-me por ter-te deixado naquele dia, a vida ensina-nos através dos nossos erros, mas nem todos tem uma segunda oportunidade para se redimirem. Tu tens a oportunidade de uma nova vida, algo que eu já não tenho. Não desperdices a vida, sobrevivendo presa ao passado. Agarra os dias vindouros com as duas mãos. Luta pela tua felicidade, por mim e por ti, para que eu possa partir em paz, sabendo que haverá apenas saudade e não remorsos. Perdoa-me por tudo, para que eu possa também, perdoar-me a mim mesma.
Abraçou aquele corpo quente, mesmo dormindo as lágrimas caiam do rosto daquela mulher. Alice sentiu-se leve, a sua missão no mundo estaria cumprida, era tempo de regressar. Levantou-se lentamente e seguiu o seu caminho. Passando por um espelho observou-se de relance por um momento, não se tinha apercebido até aquele momento que tinha envelhecido como se tivesse a idade que teria viva.
Lá fora um homem de boa aparência observava-a, tranquilo como se a conhecesse, e logo ela entendeu que a morte a aguardava numa nova forma. Aproximou-se dele…
- Chegou a hora de regressarmos.
- Então a minha missão está cumprida?
- Sim. – O homem observava-a sabendo que a pergunta transmitia alguma falta de convicção, estava em paz, mas continuava triste.
- O assassino é o único homem que sabe que morri, mesmo que tenha confessado, o meu corpo nunca foi encontrado.
- Sabia! Ele morreu há dois anos atrás, assassinado numa prisão. Até os presos tem mães, filhas e irmãs. Um homem como aquele não seria bem aceite em lado nenhum. Foi encontrado morto na sua cela. A justiça sempre chega a todos.
- Então ninguém vivo pode afirmar que realmente eu fui assassinada, amostras de sangue não provam nada.
- Onde é que queres chegar?
- Eu queria uma segunda oportunidade!
- Já a tiveste!
- A minha mãe precisa de mim.
- Todos precisam de alguém, mas o mundo não é perfeito.
- Tu observas a humanidade desde o princípio dos tempos. Tem um pouco de fé em nós, eu sei que podes fazer algo por nós, podes dar-nos algo em que acreditar.
- Isso ultrapassa-me, sou apenas um guia.
- Por favor!
- Consegues ouvir este som, esta melodia? É o som do silêncio, do fim. Eu chamo-lhe “A Melodia do silêncio”, é como um consolo divino que sentimos quando deixamos este mundo em paz, o som não significa o fim, significa que está livre, perdes o mundo mas ganhas o universo. O som está a chamar por ti.
A Alice aproximou-se do homem segurando-lhe na mão, colocou sobre o seu peito, junto ao seu coração. Consegues ouvir este som? O seu ritmo, que pulsa e estremece o nosso ser? Este é “O som da vida”. Eu escolho a vida, deixa-me viver!
O homem observou-a durante alguns momentos, lentamente esboçou o seu primeiro sorriso durante aquele percurso e partiu. A Alice manteve-se atónita durante alguns momentos, contemplou aquele mundo ao seu redor, como se pela primeira vez ele lhe pertencesse. Entrou d1entro de casa novamente, dirigiu-se ao seu velho quarto. Permanecia intacto. O frasco de batom continuava aberto em cima da sua mesa. A janela do seu quarto pintava o mesmo quadro que conhecera toda a sua vida. Deitou-se lentamente sobre a sua cama encolhendo-se sobre os cobertores, perdida entre uma exaustão que teria sido combatida até momentos atrás pela adrenalina. Cedeu e adormeceu num sono profundo.
 

Na primeira página de todos os jornais nacionais uma notícia pulsava em destaque: “Jovem desaparecida aparece ao fim de seis anos.” O mundo alegrava-se na felicidade de uma mãe, por momentos esquecia-se dos seus problemas, da sua vaidade, da sua ignorância, da sua intolerância, do seu egoísmo. Por momentos recordava o que era ser humano e viver cada dia em virtude de uma causa nobre, de um verdadeiro propósito.

 
 
 

Fim

 
(Joel Flor)

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

O som da vida - Parte I

            No ápice da montanha de gelo um sol morno se erguia por cima daquele mundo frio e silencioso, Os seus finos raios recortavam em camadas de luz os montes que se estendiam por entre o gelo até aos confins da terra.
Suspiros e murmúrios quase extintos ecoavam por entre o vento contando histórias de passados, sonhos que produziram lembranças num momento sublime que os meros mortais conhecem como vida.
O seu espírito vagueava sobre aquela paisagem sem compreender a sua natureza a sua existência, desconhecia o seu nome o seu princípio e o seu fim, sabia de certa forma que o seu corpo estava morto, não conseguia produzir qualquer som mas meditava num vazio, não sentia tristeza ou alegria ou qualquer emoção humana. Tentava recuperar qualquer lembrança de uma existência no entanto todos o dias lhe era dado a conhecer somente a sua solidão.
            Sabia de uma forma incompreensível que a determinado momento por um indefinido tempo teria sido alguém, teria vivido outra vida. A sua natureza era sublime, perfeita, mas o seu desconhecimento de todas as coisas e a sua solidão sobre aquele universo levavam-no a desejar a simplicidade de uma vida sujeita a dores e tormentos num mundo caótico em constante movimento.
            Então desejou, desejou de uma forma tão poderosa ser alguém, sentir, tocar, correr descalço sobre a terra húmida, sentir o toque da chuva sobre a pele, o sopro do vento a agitar os seus cabelos que, o universo atendeu ao seu pedido. Sentiu-se arrebatar como que aspirado às profundezas da terra e num breve instante despertou, como se há muito tivesse adormecido.
            Estava deitado sobre capim, sentia calor, ao fundo escutava vozes compulsivas e incompreensíveis de crianças que expressavam as suas naturezas alegres e rebeldes. O som parecia estranho mas ao mesmo tempo natural, quase óbvio. Levantou-se lentamente observando as suas mãos finas dedos compridos e delicados, correu-os pelo seu rosto. O toque era suave e transmitia uma sensação de conforto. As pernas balançavam como se nunca tivessem antes sido usadas. Cabelos loiros voavam de uma forma rebelde diante dos seus olhos. Caminhou com alguma dificuldade até à beira de um rio, as águas estavam tranquilas e transmitiam nitidamente a imagem do seu reflexo. Ele percebeu que na verdade era “Ela”, uma mulher bela, elegante de traços finos e esbeltos estendia-se à sua frente, desconhecia as suas vestes que pareciam apropriadas e desconhecia a sua imagem, quase certa de que em outra vida nunca teria sido a sua.
            Caminhou lentamente por entre as ervas molhadas que abraçavam o rio, observava agora as crianças de perto que a ignoravam por completo, perdidas nos seus afazeres, ausentes do complexo mundo exterior dos adultos.
Um homem observava-a de forma curiosa, apercebeu-se nitidamente da diferença entre géneros e das suas atrações, reconheceu a sua própria beleza e o efeito que exterior que produzia aos demais. Estava completamente perdida no tempo e no espaço e até que a natureza do seu retorno se revelasse teria de permanecer discreta, tentando ocultar o efeito da sua aparência enquanto desvendava o puzzle da sua existência.
Tentou afastar-se do contacto humano caminhou durante longas horas por campos, estradas, vilas, no entanto apenas se conseguiu sentir invisível entre as multidões das cidades maiores, onde todos eram estranhos entre eles.
Uma coluna de prédios estendia-se pela avenida onde os carros circulavam em dois sentidos, no passeio centenas, talvez milhares de pessoas caminhavam despercebidas de si mesmas e do mundo. Aconchegou-se num banco de costas para um pequeno jardim e voltada para a avenida. Com um capuz cobria o seu rosto ocultando os longos cabelos entre o blusão que trazia vestido. Tentava construir informação coerente, mas os seus fundamentos não tinham base. A sua história não tinha um ponto de partida e dos dois mundos que conhecia teria dúvidas de qual seria verdadeiramente o real.
Foi então que a voz de um homem que surgiu do nada sentado do seu lado se pronunciou…
- É impressionante não é?
- Desculpe? – A sua voz intrigou-lhe mais do que a pergunta que lhe dirigia o estranho, tocou lentamente nos seus lábios como se pudesse segurar as palavras com os dedos. Queria comunicar mas os argumentos não existiam.
- Refiro-me ao modo como circulam, perdidos em rotinas curtas obcecados por projetos que nunca viram a existir, numa luta constante contra a incerteza de um tempo, o tempo que lhes é concedido neste mundo.
Ela soube naquele momento que a aquele estranho possuía todas as respostas, que de certa forma também ele era parte de algo que transcendia a vida. Queria interroga-lo com centenas de perguntas mas a sua mente não as produzia. Foi então que se focou na questão principal e prosseguiu…
- O que sou eu?
- Foste em tempos, noutros tempos um deles.
- E agora?
- Não me perguntes a mim, foste tu que questionaste a tua origem, rejeitaste a tua natureza por uma segunda oportunidade.
- Isso acontece com frequência, existem mais casos?
- Apenas com os que não estão em paz com eles próprios. Aqueles que deixaram assuntos inacabados entre os mortais. Ou os que precisam se redimir dos seus erros, e corrigir os seus passos.
- O que devo eu fazer?
- Deves aproveitar o tempo que te foi dado. Em breve irás retornar.
- Quanto tempo tenho?
- Muito pouco!
- Como é que sabes tudo isto? Quem és tu?
- Sou alguém que observou muitas gerações, que conhece a natureza humana, as suas virtudes e as suas fraquezas. O resultado da sua imaturidade e por outro lado a beleza da sua devoção à vida, o poder dos seus sonhos.
- Não sei por onde começar!
- Segue o som da música.
- Qual som?
Olhou para aquela figura mas a mesma já lá não estava. Tinha-se evaporado. Confusa, começou lentamente a escutar um coro que cantava vigorosamente um canto. Levantou-se e seguiu o som.
Estreitou-se por uma ruela estreita e esguia, cruzou-se entre alguns olhares de residentes locais que estranhavam a sua presença até que estacou junto de um enorme portão em arco que estava aberto, de dentro ouvia-se um grupo de mulheres que cantava de uma forma virtuosa um canto religioso. Enquanto se apoderava daquele som que estremecia aquela sua natureza sentiu uma mão sobre o seu ombro. Voltando-se uma mulher de cor, de meia-idade sorria-lhe.
- Entra criança, vamos servir o almoço.
Denotou que estava já por alguns momentos com uma certa má disposição, que algo a incomodava, percebeu que não se alimentava a horas e o convite que a enfeitiçava com o perfume do guisado fez com que cedesse sem questionar.
Teria cerca de trinta pessoas circulando por aquela enorme casa. Ninguém a observava como uma estranha. Por outro lado, eram muito simpáticos e acolhedores. A senhora que a recebeu chamava-se Amélia, alguns minutos depois sentou-se do seu lado sorrindo de uma forma que certas pessoas sorriem, tá nas suas naturezas serem o que são e mesmo os piores trajetos que a vida por vezes impõe, não consegue mudar a natureza que as faz sorrir quando por vezes querem chorar.
- Minha criança! Pareces perdida, queres falar sobre isso?
- Eu acredito que todos temos um propósito no mundo, um motivo para estarmos aqui, mas não consigo encontrar o meu!
- Por vezes tentamos forçar o raciocínio, quando todas as respostas estão no coração. És jovem, não devias encontrar propósitos. Tens de viver somente, a vida e os propósitos hão de se revelar com o tempo. No tempo certo.
- Não estou certa do tempo que tenho!
- Ninguém está! O segredo está em viver e deixar o tempo correr!
- Sim mas no meu caso…
Susteve as suas palavras, não sabia até que ponto a sua história ou a ausência de uma poderia parecer estranha…
- Porque não voltas para casa? Pelo teu aspeto não pareces alguém que ande pela estrada. Deves ter alguém desesperado à tua procura.
- Eu não me recordo de nada! Como é que eu posso saber se alguém me procura e de onde venho?
- É simples, tens uma esquadra de polícia a dois quarteirões daqui. Se foste dada como desaparecida deverão ter um registo.
Assentiu em concordância e levantou-se lentamente…
- Obrigado pela sua hospitalidade, vou tentar descobrir alguma coisa.
Ela abraçou a Amélia sentindo um certo conforto naquele abraço, o contacto humano era um estranho despertar de emoções. Afastou-se lentamente acenando-lhe.
Contornou as pequenas ruelas saindo novamente na avenida principal, existiam dois mundos dentro daquela cidade, aquele pequeno subúrbio e aquela estrada recheada de montras, prédios, cartazes e pessoas, centenas de pessoas elegantes que circulavam seguindo as suas rotinas. A esquadra estava junto a uma esquina bem visível. Aproximou-se timidamente, cruzou-se com dois agentes que passaram por ela despercebidos. Alguns metros mais a frente outro agente a observava curioso, continuou passando por ele e entrou dentro do edifico. Várias pessoas trabalhavam entre papéis, telefones e computadores, na maioria fardados, outros pareciam civis. Dirigiu-se a um enorme balcão, do outro lado um agente jovem sorriu-lhe.
- Precisa de ajuda menina?
- Sim… Queria tentar descobrir se existe alguém a minha procura. Perdi a memória. Não me recordo nem do meu nome.
Intrigado e desvanecendo lentamente o sorriso o agente acompanhou-a a um corredor onde pediu-lhe que aguardasse. Alguns minutos passados foi encaminhada para outro agente, um homem dos seus cinquenta anos, sentou-se junto a uma secretária. Entre vários papéis tinha o retrato do agente com a esposa e duas filhas, a imagem tocou-a, mas logo retomou a sua atenção.
- Já procuraste nas tuas roupas se tens algum documento, algum contacto?
- Os bolsos estão vazios.
- Muito bem, eu vou tirar-te as impressões digitais, uma foto de rosto e outra de perfil. Se quiseres um café quente podes usar aquela máquina, isto vai demorar um pouco vou correr todas as imagens de pessoas desaparecidas nas últimas 48 horas, parece fácil mas infelizmente são mais do que imaginas. Pode ser que tenhamos sorte, e entretanto vou emitir um ficheiro com os teus dados e partilhar com as outras esquadras. Há de se conseguir alguma coisa. Sempre se consegue, tem é de se ter paciência.
- Obrigado.
E assim esperou, esperou e adormeceu estendida naquele banco desconfortável até que as dores quebrassem o sono contornando a embriaguez do cansaço. O agente de nome Carlos estava de pé diante de si, lá fora o sol tinha-se posto dando lugar a uma noite fria e gélida. A falta de conforto parecia a melhor alternativa que tinha perante a escuridão das ruas agora um pouco mais desertas.
- Lamento, verifiquei todos os casos atuais de desaparecimento nas últimas 72 horas, não existe ninguém à tua procura. São agora 22 horas tenho de ir embora, suponho que não tenhas onde ficar certo?
- Suponho que não.
- Tem uma pensão do outro lado da rua, se quiseres posso-te alojar lá e retomamos amanhã cedo. Se te sentires animada, podes sempre passar aqui a noite num dos computadores, vendo casos mais antigos. Vão andar alguns agentes por aí qualquer coisa que precises, podes pedir-lhes.
- Não acredito que consiga dormir com tanta coisa em que pensar, fico aqui.
- Muito bem, se não tiveres sorte pode ser que amanhã já tenhamos notícias.
Assentiu com um leve sorriso, tinha tido sorte com as pessoas que cruzaram o seu caminho nas últimas horas, já era algo de valor. Pesquisou vários casos sem sucesso, ao fim de quarenta minutos os olhos estavam cansados e resolveu sair um pouco. Mergulhou naquela noite escura e fria. As respostas que precisava, a busca pela verdade, ninguém desde mundo lhe podia dar.
Como se alguém escutasse a voz do seu coração uma criança que estava sentada no passeio envolta em trapos dos seus doze anos de idade dirigiu-lhe a voz.
- Os mistérios do mundo são tão pequenos quando o ser humano se debruça sobre os mistérios da sua alma, da sua própria existência. No entanto contra todas as possibilidades sem qualquer fundamento ele insiste na procura da verdade.
- Não é o certo? Buscarmos sempre a verdade?
- A verdade sem conhecimento e sabedoria é apenas uma ideia. Pode ser manipulada e transformada segundo intentos, no entanto aquele que conhece a verdade e caminha na sua luz, esse sim desvenda todos os segredos.
- Quem és tu? Para além de alguém que conhece várias gerações humanas e o demais que não me recordo.
- A humanidade só me conhece no fim da sua jornada, alguns tendem a chamar-me de morte. Eu considero uma palavra forte e negativa. Não sou eu que tiro a vida, apenas aguardo por todos quando a mesma chega ao fim, sou um guia, num novo mundo, numa nova vida.
Não vais encontrar ninguém à tua procura porque já ninguém te espera encontrar com vida. Como aguardei muitos, um dia vim por ti também, uma alma destroçada, cheia de remorsos.
- Porque motivo não me recordo de nada?
- Quanto vieste ter comigo pediste que te apagasse o passado, assim o fiz e mesmo sem o registo de uma vida, a tua alma quis regressar.
- Se eu recuperar a memória poderei saber o que busco?
- Poderás arrepender-te também de buscar seja o que for.
- É o único caminho!
Aquela criança suspirou durante breves momentos, mostrando o primeiro sinal de incerteza sobre o que iria fazer…
- Muito bem, fecha os teus olhos!
Como uma luz que clareou a sua mente a memória retornou, e ela caiu de joelhos em pranto e desespero perante o terror da verdade…


 
Continua…


(Joel Flor)
 

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Pensamentos


Preservo em mim a melodia,

O toque suave das tuas palavras

Como pétalas de seda que acariciam a alma

Na leveza de uma chuva quente de verão.

Conservo a tua imagem,

Como um descortinar de emoções,

Em que cada segundo è eterno

Cada olhar move montanhas,

Em que a saudade estremece a terra,

O trovão quebra o silêncio do mundo

E o fogo consome a esperança,

Resta-me apenas aguardar,

Que no furor da tempestade,

Na inconstante saudade

Pinte sempre um arco-íris

Um consolo, um sorriso.

Um resto do menino sonhador

Que guardava em si a chave de todos os sonhos





Joel Flor

24/07/2011